Nos últimos dezesseis anos eu tenho trabalhado para que meu filho,
que tem Síndrome de Down, seja uma pessoa autônoma. Assim como tenho trabalhado
para que a minha filha de 14 anos, que não tem Síndrome de Down, também seja
uma pessoa autônoma. O trabalho não é exclusivamente meu. É do resto da
família, da escola, da igreja e de todos os demais contextos que ele frequenta.
Vai muito além da educação formal (onde ele vai muito bem,
obrigado). Se estende a questões de comportamento, de educação financeira, de
educação social e aspectos de autonomia da vida diária.
Não acredito que ele seja um santo nem um anjo. Assim como tantos
filhos “comuns” de diversos outros pais, entre os quais eu me incluo, tenho
certeza que ele vai dar umas mancadas e fazer algumas besteiras de forma
consciente. Ou não. Assim é a vida de cada um de nós.
Mesmo assim sou frequentemente questionado se pretendo
interditá-lo quando chegar à maioridade. Segundo alguns, um instrumento de
proteção.
Interditar significa tirar de uma pessoa o direito de exercer por
conta própria os atos da vida civil. Significa impedir que ela faça escolhas e
que tome decisões que dizem respeito a sua própria vida.
Significa dizer para o meu filho: você é um incapaz.
E qual seria a minha desculpa para proferir tamanha excrescência?
Dizer que o cromossomo que não o impediu de estudar, participar da sociedade e
não o impedirá de trabalhar no futuro o tornará incapaz quando chega aos 18
anos?
Que apesar dele viver num país que assinou a Declaração deMontreal e que adotou a Convenção Internacional pelo Direito das Pessoas
com Deficiência (com status de lei constitucional), os seus direitos não são
respeitados pelos burocratas de plantão?
Que depois de brigar tanto para que todas as pessoas com
deficiência sejam consideradas tão humanas como outras quaisquer, ele vai ser
privado exatamente dos seus direitos humanos?
O artigo 12 da Convenção é bem claro quando afirma que os Estados
Partes reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em
igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida.
Não está se referindo a alguns aspectos da vida. Não está dizendo
que aspectos específicos devam ser tratados como exceções, mas que a igualdade
de direitos se estende a TODOS aspectos da vida.
Além disso, exige que se criem salvaguardas ao direito de exercer
a vida civil. Não salvaguardas que impeçam o exercício desses mesmos direitos.
Mas continuamos a acreditar que proteger as pessoas com
deficiência intelectual seja colocá-las numa redoma de vidro blindado onde elas
possam ser admiradas pelos passantes mas não tenham a possibilidade de alcançar
a vida real.
Continuamos achando que as nossas boas intenções (das quais o
inferno está cheio, como diria sabiamente a minha mãe) são mais relevantes que
as vontades das próprias pessoas que queremos defender.
Alguns poderão argumentar que a interdição permite que as pessoas
com deficiência intelectual continuem a ter acesso aos benefícios assistenciais
como o BPC
Loas que preconiza que para
recebe-lo a pessoa com deficiência seja considerado incapaz para a vida
independente.
Uma demonstração inequívoca que um salário mínimo tem mais valor
que os direitos humanos da pessoa com deficiência.
Eu vou continuar no meu caminho, o caminho que pretende levar meu
filho à ampla, geral e irrestrita garantia dos seus direitos. Que pretende
fazer dele e de todas as pessoas com deficiência seres humanos iguais a todos
os outros (e não seres de segunda, terceira ou enésima classe).
Tudo indica que terei algumas brigas pela frente. Não serão as
primeiras, nem as últimas.
Certamente uma briga eu nunca terei, que seria a minha briga com a
minha própria consciência.
Eu nunca serei capaz de chamar meu filho de incapaz.
Descrição de imagem: Fábio e Samuel se olhando
*texto originalmente escrito para
a Revista Deficiência
Intelectual Nº8