SÍNTESE DO ESTUDO
Grupo de Trabalho Interministerial para "avaliar o modelo de classificação e valoração das deficiências utilizado no Brasil e definir a elaboração e adoção de um modelo único para todo o país".
1. Introdução:O Brasil, de acordo com o censo IBGE 2000, tem 24,5 milhões de pessoas com algum tipo de limitação funcional, o que corresponde a 14,5% da população, dos quais 70% vivem abaixo da linha da pobreza. Há um arcabouço legal abrangente, de promoção e proteção dos direitos das pessoas com deficiência, que tem origem na Constituição Federal. A "Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência" e as políticas setoriais se efetivam, por intermédio de ações afirmativas e benefícios de equiparação, na tentativa de atenuar os problemas sociais existentes, em razão de todo um processo histórico, e promover a inclusão.
Atualmente, o país utiliza vários instrumentos fragmentados para categorização das deficiências, com base nas definições expressas no Decreto 3298/1999 e alterações efetuadas pelo Decreto 5296/2004. Como estão centradas em doenças e alterações na estrutura corporal, refletem um modelo puramente médico, passível de codificação pela Classificação Internacional de Doenças - CID 10, não contemplando a funcionalidade da pessoa e tampouco um sistema de valoração.
Reconhecer quem são as pessoas com deficiência e as que necessitam das diversas políticas de proteção social é uma das obrigações do Estado para promover a equiparação de oportunidades e garantir os direitos humanos e as liberdades fundamentais.
Por essas razões, o Presidente da República instituiu, através do Decreto de 26 de setembro de 2007, o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) com o objetivo de "avaliar o modelo de classificação e valoração das deficiências utilizado no Brasil e definir a elaboração e adoção de um modelo único para todo o país". O GTI realizou levantamento dos modelos e instrumentos utilizados em outros países, com vistas a subsidiar uma proposição para o Brasil, de forma coerente com a nova concepção definida pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006), ratificada pelo Decreto Legislativo n° 186/2008, com equivalência de emenda constitucional. Foram realizadas nove reuniões ordinárias para discussão do tema, entre junho e e dezembro de 2008 e uma reunião extraordinária em maio de 2009, além de subgrupos de discussão, comunicações eletrônicas entre os componentes de GTI, e foram ouvidos os especialistas indicados pela Associação Brasileira dos Deficientes com Visão Monocular e, representando as pessoas com fissura labiopalatina, a equipe do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da USP (Centrinho Bauru).
2. ConclusõesQuanto à Conceituação de deficiência
Considerando que:
1. A definição da condição de pessoa com deficiência está vinculada a um processo histórico apoiado em princípios filosóficos e teóricos.
2. Em seu preâmbulo, a Convenção reconhece que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. 3. O Artigo 1° da Convenção da ONU expressa que "pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em bases iguais com as demais pessoas". 4. Tais conceitos fundamentam as conclusões técnicas do GTI, que compreende a deficiência como um fenômeno localizado na interface biológica, psíquica, social e política do sujeito.
Conclusão
O grupo propõe a implementação da concepção vigente na Convenção1 para a construção do modelo conceitual de deficiência a ser adotado e dos instrumentos de classificação, valoração e certificação.
Quanto a Diretrizes para o modelo brasileiro
Considerando que:
1. Coexistem, nas políticas públicas brasileiras, diversos critérios de definição, métodos e instrumentos de caracterização da deficiência, que partem de concepções distintas oriundas de diferentes períodos históricos.
2. A maioria desses critérios, métodos e instrumentos são incompatíveis entre si e com a definição expressa na Convenção. 3. Apesar de existirem métodos e instrumentos em uso em outros países, alguns já em conformidade com a definição expressa na Convenção, esses não se aplicam integralmente à realidade brasileira, dada a interdependência da caracterização da deficiência com a realidade sócio-cultural. 4. A diversidade de métodos gera distorções na aplicação de políticas, além da fragmentação de serviços e, consequentemente, um desgaste para o cidadão brasileiro com deficiência, que precisa buscar diferentes órgãos públicos e documentos para acessar seus direitos.
Conclusões:
Faz-se necessária a criação de um modelo único de classificação e valoração do qual derivem instrumentos adequados às políticas públicas voltadas às necessidades dos cidadãos brasileiros com deficiência, coerente com as seguintes diretrizes: 1. A caracterização, classificação e valoração das deficiências não devem se basear unicamente em diagnósticos clínicos de doenças, afecções e lesões traumáticas.
2. Também não devem se basear unicamente em diagnósticos de seqüelas (consequências orgânicas) das doenças, afecções e lesões traumáticas. Ex: monoparesia, paraplegia, afasia, baixa visão.
3. A caracterização, classificação e valoração das deficiências devem considerar, simultaneamente e de forma equânime, os fatores pessoais (gênero, nível de instrução, idade, modo de enfrentamento/ resiliência), fatores ambientais (acessibilidade, apoios, atitudes), fatores sociais, fatores econômicos que favoreçam ou dificultem o desempenho em atividades e participação (funcionalidade), além das estruturas e funções do corpo.
4. O modelo ora proposto deve, portanto, coadunar-se com o modelo da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde - CIF (OMS, 2001), salientando tratar-se de uma classificação e não um instrumento de avaliação, uma vez que não estabelece os limites de quem é ou não pessoa com deficiência.
5. A CIF define incapacidade como uma condição mais abrangente que deficiência, consistindo em um termo genérico que inclui deficiências, limitações de atividades e restrições à participação. O termo incapacidade indica principalmente os aspectos negativos da interação entre um indivíduo (com uma determinada condição de saúde) e seus fatores contextuais (fatores ambientais ou pessoais), envolvendo uma relação dinâmica. Um indivíduo pode apresentar uma deficiência (no nível do corpo) e não necessariamente viver qualquer tipo de incapacidade. De modo oposto, uma pessoa pode viver a incapacidade sem ter nenhuma deficiência, apenas em razão de estigma ou preconceito (barreira de atitude).
6. A valoração deve considerar a natureza, o tipo e a freqüência de apoios ou suportes2 que a pessoa com deficiência necessita, em consonância com a teoria dos apoios (AAMR, 2006).
7. Independentemente da doença de base ou da seqüela orgânica (visão monocular, fissura labiopalatina, albinismo, doenças crônicas) qualquer pessoa poderá ser avaliada pelo modelo proposto e ter sua deficiência valorada conforme alterações importantes em sua funcionalidade, considerando a influência de fatores sociais, econômicos, ambientais, dentre outros. Dessa forma, nenhuma doença será excluída, mas a valoração da deficiência ou incapacidade dependerá da avaliação global do indivíduo, com base na CIF e na teoria dos apoios.
8. Como o conceito de deficiência é dinâmico, a normatização, que define o modelo de classificação e os instrumentos, deverá permitir mudanças que acompanhem a evolução do próprio conceito, portanto, apresentando-se na forma de Decreto ou similar.
Quanto a Diretrizes para implantação do modelo
Considerando que:
1. Cada órgão do Poder Público, responsável pela implementação das políticas setoriais e ações afirmativas, tem respondido às demandas e necessidades das pessoas com deficiência de forma não articulada, gerando diferentes mecanismos, práticas e serviços de verificação da deficiência.
2. O Poder Legislativo, sensível às demandas particulares de grupos populacionais específicos, pela ausência de um modelo único norteador de sua prática, tende a propor a adição de categorias baseadas exclusivamente em doenças e seqüelas, com ampliação da população atendida, sem beneficiar necessariamente o cidadão com deficiência mais vulnerável socialmente e mais necessitado, ou seja, sem garantia de equidade.
3. O uso de recursos financeiros aportados para benefícios e outras ações especiais poderia ser otimizado se as avaliações não fossem tão fragmentadas e se houvesse maior coerência entre os instrumentos. 4. Até o momento não existe conhecimento suficiente sobre o impacto, financeiro ou social, da aplicação de recursos e seus efeitos na qualidade de vida das pessoas contempladas e não contempladas pelos benefícios e ações afirmativas.
Conclusões:
1. A avaliação e valoração da deficiência deverão gerar uma certificação única que dará acesso mais equitativo às diversas ações afirmativas ou benefícios.
2. Faz-se necessária a criação de uma rede de avaliação, valoração e certificação de abrangência nacional.
3. A certificação deverá ser emitida com base em avaliação realizada por equipe multiprofissional, com atuação interdisciplinar, especificando os benefícios e/ou ações afirmativas para os quais a pessoa com deficiência é elegível.
4. As equipes deverão ser capacitadas para aquisição de habilidades e conhecimentos específicos para implementação do modelo e aplicação dos instrumentos de avaliação.
5. Será necessária a realização de um estudo de curto a médio prazo, contemplando: detalhamento do modelo, elaboração de instrumentos e rotinas, bem como a validação dos instrumentos, por instituição de pesquisa que apresente condições técnicas para sua execução.
6. O monitoramento e avaliação de resultados e impacto, social e econômico, da implantação do modelo deverão ser realizados por instituição de pesquisa que atenda às condições técnicas para sua execução.
3. Recomendações:
RECOMENDAÇÕES A CURTO PRAZO:
Quanto ao detalhamento do modelo
Dado que o modelo proposto deve:
1. responder à complexidade da questão, articulando os fatores contextuais (pessoais e ambientais), sociais, econômicos e orgânicos que favoreçam ou dificultem o desempenho de atividades e participação (funcionalidade) das pessoas com deficiência,
2. não atribuir a priori pesos diferenciados a estes fatores, tratando-os de forma equânime no processo de particularização do sujeito
3. ser abrangente de forma a poder ajustar-se às diversas naturezas das políticas, programas e ações de combate à discriminação e marginalização social e da implementação de medidas afirmativas por meio da concessão de benefícios e/ou serviços
4. permitir a construção de instrumentos de avaliação diferenciados, segundo critérios de elegibilidade da população alvo, a depender da finalidade de cada benefício. Isto significa que haverá pessoas com deficiência que se enquadrarão para alguns benefícios e não para outros.
5. utilizar experiências anteriores, como a do Benefício de Prestação Continuada- BPC, para a construção dos instrumentos.
Faz-se necessário um detalhamento do mesmo a partir de estudos de aplicabilidade deste modelo na diversidade das situações reais.
Quanto à elaboração de Instrumentos, rotinas e práticas de classificação, valoração e certificação
Dado que:
1. O modelo deve traduzir-se em instrumentos, rotinas e práticas que sejam fiéis à concepção de deficiência contida na Convenção, em termos filosóficos, teóricos e conceituais.
2. O modelo proposto deve traduzir-se em instrumentos, rotinas e práticas específicos e adequados a cada finalidade dos benefícios e medidas afirmativas.
3. Esses instrumentos, rotinas e práticas devem ser viáveis e atender à diversidade das realidades regionais brasileiras, considerando, por exemplo, a infraestrutura da rede de recursos.
4. Esses instrumentos, rotinas e práticas devem responder à natureza dos benefícios e ações afirmativas existentes e serem capazes de incorporar a evolução das políticas. Faz-se necessária a criação de instrumentos, rotinas e práticas nacionais. Quanto à validação dos instrumentos Por tratar-se de instrumentos, rotinas e práticas inovadoras sem acúmulo histórico de experiências, faz-se necessária a realização de um processo de validação dos mesmos, incluindo apresentação para consulta pública.
Quanto à implementação da Rede de Classificação, Valoração e Certificação Na ausência de uma rede que viabilize a implementação desta política, faz-se necessária a sinergia de esforços das áreas de Saúde, Assistência Social e Previdência, otimizando os recursos existentes para a implementação de uma rede coordenada, de abrangência nacional, descentralizada e regionalizada de classificação, valoração e certificação das deficiências, mediante os seguintes passos:
1. detalhamento das diretrizes para implementação da rede pelos ministérios envolvidos, em consonância com as diretrizes já explicitadas na parte inicial deste documento, respeitando as características citadas, mantendo serviços de referência com base populacional e territorial, equipes multiprofissionais com atuação interdisciplinar, utilizando preferencialmente as estruturas existentes com otimização e/ou ampliação das mesmas quando necessário.
2. levantamento dos recursos humanos e materiais existentes e das necessidades de ampliação. 3. elaboração de conteúdo, método e infraestrutura para o desenvolvimento de um programa de capacitação das equipes que atuarão na rede.
4. definição das fases subseqüentes com metas de médio prazo.
Quanto às Repercussões para os atos normativos de gestão pública
-Estudo das Leis e Decretos existentes, verificando a coerência com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU e com o modelo proposto. -Levantamento de necessidades de outros Atos Normativos que garantam a adoção e implantação do modelo.
RECOMENDAÇÕES A MÉDIO PRAZO
Quanto à implementação da Rede de Classificação, Valoração e Certificação Continuidade da implementação das metas de médio prazo definidas na fase anterior, dado que esta tarefa ultrapassará necessariamente o curto prazo pela sua complexidade e dimensão.
Quanto ao monitoramento da Rede de Classificação, Valoração e Certificação Dado que a Rede proposta é uma experiência nova e inovadora, na medida em que envolve uma gestão interministerial de serviço, faz-se mister o desenvolvimento de uma prática de monitoramento de sua operação e dos resultados alcançados.
Quanto à avaliação de Resultados e de Impacto Social e Econômico da população alvo
A avaliação de resultados e de impacto social e econômico é fundamental para toda e qualquer política pública, ainda mais se esta se reveste do objetivo de equiparar oportunidades e reparar situações históricas de discriminação e marginalização social, como é o caso da concessão dos benefícios da assistência e previdência social e das medidas afirmativas, incluindo as ações para a garantia de direitos das pessoas com deficiência.
Quanto às repercussões estimadas para o orçamento público e análise da relação custo-benefício
Considerando que a adoção de um modelo único para a classificação e valoração da deficiência, com necessária construção de novos instrumentos, irá gerar conseqüências para o orçamento público, faz-se necessário estimar essa alteração4 de custos. A partir do resultado dos estudos relativos ao impacto social e econômico e seus custos, será possível analisar a relação custo-benefício dos benefícios da assistência e previdência social e das medidas afirmativas adotadas pelo Brasil.
Quanto às repercussões para os atos normativos de gestão pública
A partir do levantamento inicial das necessidades de outros Atos Normativos, tornar-se-á obrigatória a proposição de novos atos legais, no sentido de garantir a adoção e implantação do modelo proposto.
4. Conclusões propositivas
1. Contratação, com recursos públicos, de Consultoria Técnica especializada de Instituição Pública de Pesquisa e ou Ensino Superior para realização de estudos, que subsidiem e viabilizem a implantação do modelo de classificação, valoração e certificação da deficiência, atendendo às necessidades decorrentes das atividades previstas a curto e médio prazo, já referidas. Tais atividades deverão abranger desde o detalhamento do modelo e a elaboração de instrumentais, até a análise dos resultados e do impacto alcançados pela adoção das referidas medidas, culminando na avaliação de custo-benefício e equidade das mesmas.
2. Criação de um Comitê de Especialistas que seja responsável pela implantação da Rede de Classificação, Valoração e Certificação, a partir dos produtos do GTI e da Consultoria especializada. Este comitê deverá ter um caráter mais permanente e ser composto por profissionais indicados pelos ministérios, não necessariamente pertencentes ao seu corpo funcional de direção.
3. Constituição de um grupo de trabalho responsável pelo estudo das alterações que se farão necessárias a curto e médio prazo nos Atos Normativos da Gestão Pública. Este grupo de trabalho deverá ter duração definida e ser constituído por especialistas não necessariamente pertencentes ao corpo funcional de direção das áreas técnicas dos ministérios envolvidos.
5. Produtos Esperados:
1. Documento técnico contendo o detalhamento justificado do modelo brasileiro proposto.
2. Instrumentos de classificação, valoração e certificação da deficiência, segundo os diferentes benefícios e medidas afirmativas existentes no arcabouço legal brasileiro.
3. Recomendações para a Implementação da Rede de Classificação, Valoração e Certificação, incluindo os aspectos referentes à gestão, funcionamento, recursos humanos, organograma e fluxograma, bem como metas, método, custos e instâncias envolvidas em sua operacionalização. 4. Documento técnico contendo sugestão de indicadores e de instrumentos para acompanhamento/monitoramento da aplicação do modelo e do instrumental, bem como do funcionamento da Rede de classificação, valoração e certificação.
5. Documento técnico contendo sugestão de indicadores e de instrumentos para avaliação de resultados e de impacto social e econômico da adoção do modelo proposto.
6. Documento técnico contendo estimativa de custos e impacto no orçamento público a partir da adoção do modelo brasileiro.
7. Documento técnico contendo análise da relação custo-benefício da concessão de benefícios da assistência e da previdência social, bem como das medidas afirmativas existentes no arcabouço legal brasileiro.
Síntese enviada por Flávia Maria Vital - CVI Araci Nallin São Paulo