quarta-feira, 18 de junho de 2008

Ser normal é uma normose

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Durante o 1º. Friscap*, em Serra Negra, eu tive a feliz oportunidade de ouvir novamente o Dr José Moacir falando dos conceitos de Normose, usando as tiras e as charges do Quino como referência. Não poderia ter sido uma combinação mais feliz. Foi uma pena que a lei de Murphy onipresente em eventos que usam recursos tecnológicos (ou seja, todos) não permitiu ouvirmos a trilha sonora da apresentação, conhecendo o gosto musical do José Moacir, seria a cereja do bolo.

Num determinado momento, depois de falar sobre o conceito de normose, ele perguntou ao público o que eles consideravam normótico. Notem, ele não estava falando para um público acadêmico, a maioria das pessoas presente eram aquelas que alguns chamam de “gente simples” (como se algum ser humano fosse simples). Surgiram várias respostas e, sem exceção, todas demonstravam ter compreendido perfeitamente o conceito. A melhor, na minha opinião, foi um senhor que disse que normótica era a indiferença das pessoas – perfeito !

Eu fiquei com a minha pulga de estimação atrás da orelha procurando algo que eu considerasse normótico. Concluí que ser normal é uma normose.

Você deve estar se perguntando, mas afinal, que raios é Normose ?

Segundo Pierre Weill temos uma crença bastante enraizada de que tudo o que a maioria das pessoas pensa, sente, acredita ou faz, deve ser considerado como normal e deve servir de modelo para o comportamento de todo mundo. E se é modelo para todo mundo, isso deve servir de base para a educação.
O problema é que a normose é uma doença. Não é apenas um consenso sobre valores equivocados mas um “conjunto de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de agir que levam à sofrimentos, doenças ou mortes.” O que define um comportamento normótico é que ele é :

  • Consensual em torno da sua normalidade.

  • Inconsciente quanto ao fato de ser algo doentio

  • Provocador de danos sérios e reais
Já escrevi uma vez sobre a falsa idéia que exista uma normalidade. Mas nunca tinha me atentado ao fato dessa busca pela mesma ser uma normose. Vejam por que :

Consensual em torno da sua normalidade : com raras exceções (eu devo ser uma das 3 ou 4 delas), todo mundo acredita que existam pessoas normais, que determinados comportamentos sejam normais, que o desenvolvimento humano segue padrões de normalidade (aliás, existem centenas de livros que parametrizam essa normalidade).

Muitos repetem ad nauseam que “de perto ninguém é normal”, mas preferem olhar todo mundo de longe. É mais cômodo. Olhar os seres humanos de perto incomoda o nosso lado narciso. De longe, como diria o senhor que mencionei acima, é mais fácil manter a indiferença.

Inconsciente quanto ao fato de ser algo doentio : você pode ter concordado comigo até agora, o que não significa que, sem perceber, tanto você quanto eu, continuamos a ter as nossas réguas de normalidade. Continuamos a nos medir e medir as demais pessoas por essas réguas.

Inconscientemente, todos nós acreditamos na normalidade e a buscamos cotidiana e incessantemente. Pior, censuramos, consciente e inconscientemente, as pessoas que não se enquadram. Olhamos feio para aqueles que se vestem de forma incomum, criticamos quem não gosta ou pratica as mesmas coisas que todo mundo – especialmente aquele vizinho que diz que não tem um computador.

Pais de outras crianças olham com piedade para os meus filhos quando digo que eles não vão ao McDonald´s nem assistem a Xuxa. Uma das tiras da Mafalda que o José Moacir mostrou era da escola toda em volta dela assombrada com o fato dela não ter televisão. Ele esqueceu de mostrar a tira em que o Manolito diz que não gostava dos Beatles (nunca esquecendo que a Mafalda foi publicada na segunda metade dos anos 60)

Provocador de danos sérios e reais : aqui entra o aspecto mais grave dessa história toda. Em busca da normalidade as pessoas tem perpetrado verdadeiras agressões contra seus filhos e seus alunos.

Apesar de estar muito envolvido com as questões da pessoas com deficiência (também massacradas pelos ideais e métodos de busca de normalidade), não são só elas que tem sido, literalmente, perseguidas naquilo que são consideradas desviantes.

Crianças de 6, 7 anos já começam a ser bombardeadas por volumes abusivos de conteúdo nas escolas. Precisam se preparar para esse mundo globalizado, o que é normal. Além disso têm uma agenda de atividades extra-curriculares de dar inveja a qualquer executivo de multinacional, claro, para ser normal precisa falar mais de uma língua, estudar alguma forma de arte, praticar esportes de forma organizada e competitiva (brincar em casa ou no páteo da escola não é considerado como atividade física saudável...). Isso é apenas o básico, o mais sofisticado inclui ainda aulas de informática, robótica, kumon...

E no final, são chamadas de crianças hiperativas ou com déficit de atenção. Ah, atualmente ser hiperativo é normal. Uma dose diária de ritalina resolve o problema, acompanhado, é claro, de mais atividades, as terapias.

Não importa que isso gere stress, mau comportamento, atitudes agressivas. Isso também é normal. Ainda que cause sofrimentos, doenças e, no limite, até mortes (ou acham que jovens dependentes de drogas, adolescentes que se matam no trânsito ou estudantes que entram em escolas armados são só anormais ?)

Qual a conclusão disso tudo ?

Eu não tenho nenhuma conclusão. Uma coleção de preocupações a respeito, mas não consigo visualizar algum caminho que possa mudar esse processo.

O mais grave é que eu estou começando a achar que esse meu ceticismo é normal.


*Fórum Regional de Inclusão Social do Circuito das Águas Paulista

Descrição da imagem : tira do Quino que mostra todas as crianças da escola da Mafalda olhando com espanto para o Manolito ao saber que ele não gosta dos Beatles.

4 comentários:

  1. Fábio:
    Me permiti uma gostosa e duradoura risada após ler seu texto...
    Seu texto incomoda um pouco e esta incomodaçao chega a ser prazeirosa, pois o estado de reflexão é muito bom. Ser ou nao Ser, eis a questao...
    Caro Watson, acho que quem matou foi o mordomo!!!!
    bjos
    pat

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  2. O que é ser normal(?)?, isso daria uma enquete e tanto, e um resultado assustador, melhor deixar quieto... da minha parte continuo usando interrogação quando preciso usar tal palavra, isso é normal(?)?

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  3. Oi Fábio, imerso nesta paranóia de faço ou não faço parte da normose global e generalizada, penso que um viés interessante para esta crise existencial está representada na expressão "Ser ou não ser, continuar fazendo é a questão".
    Fireman

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  4. Normose é o modelo de corpo, beleza, casa, felicidade e família exibido nas páginas de Caras. Corpos e cenários artificialmente criados que fazem com que se sintam anormais os que não vivem assim.

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"Censura é o uso pelo estado, grupo ou indivíduo de poder, no sentido de controlar e impedir a liberdade de expressão. A censura criminaliza certas ações de comunicação, ou até a tentativa de exercer essa comunicação. No sentido moderno, a censura consiste em qualquer tentativa de suprimir informação, opiniões e até formas de expressão, como certas facetas da arte"

Como bem diz a Cristiana Soares no seu ótimo "Como lidar com o anonimato nos comentários" , o processo de aceitar posts anônimos nem sempre é fácil. Eu optei por permitir que qualquer um escreva seus comentários sem censura.

Mas fica um "disclaimer", ao estilo do mencionado no artigo :
Eu me reservo o direito de excluir comentários e textos que julgar ofensivos, difamatórios, caluniosos, preconceituosos, que sejam de alguma forma prejudiciais a terceiros ou textos de caráter promocional. Baixo calão fora de contexto idem ibidem.