quarta-feira, 25 de junho de 2008

A novela, as famílias e as escolas

O fato da novela de maior audiência, do canal de maior audiência da nossa televisão, ter retratado a vida de uma criança com deficiência gerou intensos debates sobre as cenas que ocorreram na mesma. Não há dúvidas que a forma como o tema se conduziu trouxe mais benefícios do que problemas para as pessoas com Síndrome de Down, ainda que tenha gerado uma forma de "adoração" típica de modismos.

Isso não significa que não devemos ter uma leitura crítica a respeito do assunto.

Não podemos esquecer que se trata de uma novela, com todos os componentes próprios desse tipo de dramaturgia : é superficial, afeita aos escândalos e à pieguice e, definitivamente, focada nas classes mais favorecidas. É uma ingenuidade achar que qualquer assunto vá ser tratado da forma que gostaríamos que fosse (e digo, gostaríamos, porque escrevo na condição de pai de um menino com Síndrome de Down). Basta ver que um dos pontos mais importantes na vida das nossas crianças é a estimulação precoce, que foi solenemente ignorada na trama.

No entanto, um efeito colateral me chama mais a atenção no momento, pois sua recorrência nos grupos de discussão parece estar crescendo, que é a relação família e escola. Num dos capítulos, a mãe adotiva da menina identificou que ela estava sendo discriminada (de fato) na escola e partiu para a briga, inclusive com ameaças de utilização de meios legais. Claro que a escola acabou se mobilizando e, como sempre, a corda ameaçou estourar do lado mais fraco (na estrutura escolar) que é a professora.

A partir desse capítulo, pudemos acompanhar o relato de muitos pais e mães que passaram por situações semelhantes ou muito piores. Alguns nem sabiam que podiam recorrer ao Ministério Público em defesa do direto dos seus filhos (na verdade podem até dar queixa na delegacia, pois isso é crime) mas, sempre existe um mas, isso também tem o seu lado perverso, alguns pais estão achando que qualquer falta de atenção com os seus filhos "especiais" é motivo para ameaçar escolas e professores.

Como se a família fosse realmente um ambiente inclusivo....

E não é. Muitos pais de crianças com deficiência discriminam os próprios filhos ao tratá-los de forma absurdamente diferenciada porque o "coitadinho" tem isso ou aquilo....ao permitir que eles sejam os donos do mundo sem noção de limites, a não exigir que eles se desenvolvam porque é mais cômodo mantê-los como bebês (vide a própria novela, onde uma menina de 6 anos fazia as refeições num cadeirão).

Acontece que é próprio da natureza humana jogar a culpa nos outros e, nesse caso, o bode expiatório vai ser a escola. E o bode expiatório da escola é o professor. Nossas famílias, cada vez mais, terceirizam a criação dos filhos, esperam que a escola resolva o "problema" de tirar fraldas, que imponha limites que as crianças não conhecem em casa e até que aprendam a se alimentar de forma saudável (mesmo quando chegam em casa e os pais só comem porcarias).

Uma criança com deficiência não é boba. Ela observa e imita o comportamento dos pais da mesma forma que qualquer outra criança. Esses vão lhe servir de referência durante um bom tempo. Se ela percebe que é tratada de forma condescendente vai se aproveitar da situação, em casa e na escola.

Não vou defender indiscriminadamente as escolas. O padrão da grande maioria destas ainda é de discriminação e de exclusão de todos os seres que podem dar trabalho: pessoas com deficiência, com problemas de comportamento, pobres, em conflito com a lei, abusadas e surradas... a lista de "problemáticos" é imensa, aliás, esses seres humanos, são muito complicados mesmo. O grande objetivo de muitos diretores e professores é escapar dessa "encrenca" chamada inclusão.

Acho que a gente precisa também olhar para dentro das famílias e ver o que acontece antes de jogar a culpa toda na escola....

Seja em casa, seja na escola, nossas crianças não devem ser tratadas como "café com leite"...
Descrição da imagem : foto sobreposta de Regina Duarte e Joana Mocarzel, como personagens da novela Páginas da Vida da TV Globo.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Xiita convidada - Incluindo na comunidade

*Claudia Grabois


Muitos dos nossos heróis bíblicos e rabinos renomados tinham reconhecidamente algum tipo de deficiência. Moises tinha um problema na fala, Isaac e Jacó se tornaram deficientes visuais com a idade, o rabino Nahum de Ginzo era cego, e muitos outros poderiam ser citados, se contrapondo ao grandes heróis da cultura greco romana.

Nossa tradição primou desde o inicio pela proteção das pessoas com deficiência, enquanto na Grécia bebes nascidos com deficiência eram abandonados e por conseqüência não sobreviviam. Na nossa cultura tal ato jamais foi admitido, pois matar uma criança por qualquer que fosse a razão constituía assassinato
Não obstante leituras preconceituosas de textos bíblicos, primamos desde sempre pelos direitos humanos de todas as pessoas, onde estão inclusas as pessoas com deficiência.

Pela nossa tradição, reconhecendo que somos todos criados a imagem e semelhança de D’us, reconhecemos também o valor individual de cada um(a) com a unicidade e plenitude inerentes à pessoa humana, levando em conta todas as suas características individuais, seja ela uma pessoa com ou sem deficiência.

As pessoas com ou sem deficiência são iguais mas lamentavelmente as que tem algum tipo de deficiência são privadas de muitas coisas, principalmente nos ditos países em desenvolvimento.

No mundo existem aproximadamente 600.000.000 de pessoas com algum tipo de deficiência sendo que aproximadamente 25.000.000 delas vivem no Brasil, segundo estatísticas da ONU. Deste número 27% vive em situação de pobreza extrema e 50% em situação de pobreza.

Outro dado importante é que a pobreza por si só produz 1/3 de todas estas deficiências que poderiam ser evitadas com o aumento das políticas públicas de prevenção e inclusão social, bem como com a não discriminação.

O direito de ir e vir para as pessoas com deficiência ainda está longe de se tornar realidade, e isto impede também o direito à livre expressão, pois quem não chega, não fala.

Mas há também aqueles que conseguem chegar mas não podem se expressar pela falta de um interprete, também de direito, para sua própria língua, que aqui chamamos de Libras-Lingua Brasileira de Sinais. E também aqueles que não são ouvidos nunca, os deficientes intelectuais, privados do convívio social pela segregação imposta, e se analisarmos bem, imposta a todas nós, pois em outro ângulo pessoas sem deficiência também acabam segregados pela impossibilidade desta convivência.

Os tipo de deficiências são: Física, Sensorial, Múltiplas e Intelectual e denominamos as pessoas com deficiência simplesmente de “pessoas com deficiência” e as pessoas sem deficiência de “pessoas sem deficiência”.

Em todas as culturas e tradições existe um grande número de pessoas com deficiência que interagem com suas comunidades na proporção que as comunidade interagem com elas, ou seja, de acordo com a acessibilidade proporcionada, pois quanto mais acessível, maior
participação de pessoas com deficiência e entende-se como meio para tornar acessível, o desenho universal, Libras(Brasil), Braille, acesso tecnológico e mudança de atitudes.

A comunidade judaica , inserida no contexto social brasileiro, apresenta as mesmas dificuldades para visualizar a pessoa com deficiência como um ser pleno e sujeito de direitos, assim como todos somos. Talvez por ser mais fácil “filantropizar” do que promover o acesso e reconhecer a cidadania, continuamos a promover atendimentos segregados e por conseqüência segregadores que nos levam a um preconceito ainda maior com a infantilização de pessoas com algum tipo de deficiência e desmerecimento do seu valor social.

A luta pelos direitos das pessoas com deficiência tem avançando muito nos últimos anos e acredito que as comunidades, sob pena de ficarem ultrapassadas em matéria de reconhecimento aos direitos humanos, precisam se apressar para acompanhar este rico processo.

Adaptações e mudanças podem ser feitar para modificar consciências, corações, computadores, entendimentos, espaços e acessos a todos que queiram e precisem, a todas que por direito pertencem. São pequenas e grandes medidas , listo algumas delas abaixo, algumas dispendiosas, outras de baixo ou mesmo sem custos.

1-Criar um grupo de inclusão em sua instituição para traçar políticas inclusivas para pessoas com deficiência, tendo pessoas com deficiência participando deste processo e levando a discussão para dentro da comunidade

2-Fazer pelo menos a cada dois meses para toda a instituição uma atividade que envolva pessoas com deficiência, ou seus representantes e levar a sério o lema” Nada Por Nós Sem Nós”

3-No caso de sinagoga, pedir também que regularmente seu rabino fale sobre a importância da inclusão ampla, geral e irrestrita de todas as pessoas com deficiência em suas prédicas

4- Tenha nos serviços a lingua brasileira de sinais, sinalizando que surdos são bem vindos,
tenha também material impresso da instituição em braille

5- No caso de Sinagoga, fazer um projeto para conseguir também Tora e Sidur em braille, para que os deficientes visuais sejam igualmente bem vindos. As recomendações valem também para instituições políticas, sociais e de juventude.

6- Verificar se a Bimah é acessível e verificar também se a mezuzá está colocada ao alcance de alguém em um cadeira de rodas. Fazer o mesmo com a caixa de kipot, com o armário dos sidurim e tudo o mais que pode ser alcançado por quem é cadeirante..

7- Verificar se os jornais comunitários podem ser acessíveis com o uso das modernas ferramentas da internet, para os deficientes visuais, colaborando para que se torne realidade.

8- Chamar pessoas com deficiência, de todos os tipos para participar da sua instituição e insista, pois esta participação é importante não apenas para ela, mas principalmente para os demais

9- Incluir imediatamente todas as crianças , adolescentes e jovens com deficiência e reúna os jovens da instituição para participar deste processo e fazer o que for preciso para que isto aconteça. Realizar oficinas, tratar também do assunto com enfoque judaico, não deixar de lembrá-los que “nada faz uma pessoa ser melhor ou pior que a outra” e que mesmo vivendo em comunidade somos diversidade e mostrare que é possível. A convivência com as diferenças nos torna mais aptos para a vida .

10- Propor que no curriculo de estudo para bar mitzvah/batmitzvah seja adicionado a inclusão de pessoas com deficiência à luz do judaismo

11- Ensinar aos seus filhos em casa que as pessoas com deficiência não são doentes, ensinar também aos professores das escolas, aos monitores e madrichim, aos lideres, e transmita isto a todos. Ensinar o mesmo em todas as Instituições.

12- Pedir que as escolas coloquem nos seus currículos desde o maternal a convivência com a diversidade e a aceitação das pessoas com deficiência e incluam as famílias neste trabalho. Lutar pela escola inclusiva para todas as crianças, escola que não atende a todas não é Escola, pelo menos de acordo com as nossas leis de nosso pais, e do pirkei avot. Lembre sempre dos benefícios que uma criança que não tem deficiência leva para sua vida adulta ao poder crescer ao lado de uma criança com deficiência, aprendendo a respeitar as diferenças, e portanto aprendendo a exigir ser respeitado. Pois em algum momento da vida, cada um de nós sempre será colocado como o diferente. Mas principalmente tenha claro que a inclusão é um direito amplo, geral e irrestrito, onde não cabem uma negação. E as escolas devem entender isto completamente.

13- Tornar os lugares acessíveis, com rampas, elevadores, banheiros , espaços adequados e o que mais for necessário. Levar em frente esta idéia. A persistência leva ao êxito. Mantenha palcos acessíveis bem como locais de reuniões, e se for necessário perca um pouco do seu conforto para o bem de todos. Impedir uma única pessoa de participar de atividades por conta de nosso egoísmo em não facilitar o acesso, contraria nossa própria existência.

14-Fazer intensamente um trabalho para que as pessoas com deficiência sejam vistas com
naturalidade, mas tendo claro que inclusão só se aprende fazendo, é uma luta diária contra preconceitos e por direitos aparentemente básicos, mas nem sempre claros para a maior parte das pessoas.

15-Promover acessibilidade nos meios de comunicação, entendendo que o direito à
informação é para todos e sem ele não existe igualdade de oportunidades.

16-Tenha claro que todas as mudanças estruturais que vierem a ser feitas beneficiarão todas as pessoas, diminuirão riscos de acidentes para grávidas, crianças e idosos, diminuirão o número de doentes, pois a exclusão provoca inúmeras doenças,diminuirão a violência, pois a inclusão caminha na contramão e diminuirão as distâncias, pois a inclusão rompe inúmeras barreiras e muito embora seja trabalhosa, torna a vida mais bonita.

Muito embora as sugestões tenham sido feitas visando a inclusão das pessoas com deficiência,o direito à inclusão é para TODOS. Se para as crianças é direito inalienável, para jovens,adultos e idosos é o verdadeiro exercício da cidadania, é o ir e vir ,a livre expressão, saúde física e mental,a busca pela dignidade,pela justiça social e o caminho para valorização total da diversidade e legitimação das diferenças com respeito a características individuais e coletivas.Inclua-se, inclua o outro e o aceite no seu TODOS , assim estaremos também construindo a paz

*Claudia Grabois
Diretora de Inclusão Social da FIERJ
Membro da equipe técnica do Forum de Educação Inclusiva do Estado

Descrição da imagem : foto do filme “Praying With Lior", história de um jovem com Síndrome de Down que se prepara para o seu Bar Mitzvah

Ser normal é uma normose

clique na imagem para ampliar


Durante o 1º. Friscap*, em Serra Negra, eu tive a feliz oportunidade de ouvir novamente o Dr José Moacir falando dos conceitos de Normose, usando as tiras e as charges do Quino como referência. Não poderia ter sido uma combinação mais feliz. Foi uma pena que a lei de Murphy onipresente em eventos que usam recursos tecnológicos (ou seja, todos) não permitiu ouvirmos a trilha sonora da apresentação, conhecendo o gosto musical do José Moacir, seria a cereja do bolo.

Num determinado momento, depois de falar sobre o conceito de normose, ele perguntou ao público o que eles consideravam normótico. Notem, ele não estava falando para um público acadêmico, a maioria das pessoas presente eram aquelas que alguns chamam de “gente simples” (como se algum ser humano fosse simples). Surgiram várias respostas e, sem exceção, todas demonstravam ter compreendido perfeitamente o conceito. A melhor, na minha opinião, foi um senhor que disse que normótica era a indiferença das pessoas – perfeito !

Eu fiquei com a minha pulga de estimação atrás da orelha procurando algo que eu considerasse normótico. Concluí que ser normal é uma normose.

Você deve estar se perguntando, mas afinal, que raios é Normose ?

Segundo Pierre Weill temos uma crença bastante enraizada de que tudo o que a maioria das pessoas pensa, sente, acredita ou faz, deve ser considerado como normal e deve servir de modelo para o comportamento de todo mundo. E se é modelo para todo mundo, isso deve servir de base para a educação.
O problema é que a normose é uma doença. Não é apenas um consenso sobre valores equivocados mas um “conjunto de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de agir que levam à sofrimentos, doenças ou mortes.” O que define um comportamento normótico é que ele é :

  • Consensual em torno da sua normalidade.

  • Inconsciente quanto ao fato de ser algo doentio

  • Provocador de danos sérios e reais
Já escrevi uma vez sobre a falsa idéia que exista uma normalidade. Mas nunca tinha me atentado ao fato dessa busca pela mesma ser uma normose. Vejam por que :

Consensual em torno da sua normalidade : com raras exceções (eu devo ser uma das 3 ou 4 delas), todo mundo acredita que existam pessoas normais, que determinados comportamentos sejam normais, que o desenvolvimento humano segue padrões de normalidade (aliás, existem centenas de livros que parametrizam essa normalidade).

Muitos repetem ad nauseam que “de perto ninguém é normal”, mas preferem olhar todo mundo de longe. É mais cômodo. Olhar os seres humanos de perto incomoda o nosso lado narciso. De longe, como diria o senhor que mencionei acima, é mais fácil manter a indiferença.

Inconsciente quanto ao fato de ser algo doentio : você pode ter concordado comigo até agora, o que não significa que, sem perceber, tanto você quanto eu, continuamos a ter as nossas réguas de normalidade. Continuamos a nos medir e medir as demais pessoas por essas réguas.

Inconscientemente, todos nós acreditamos na normalidade e a buscamos cotidiana e incessantemente. Pior, censuramos, consciente e inconscientemente, as pessoas que não se enquadram. Olhamos feio para aqueles que se vestem de forma incomum, criticamos quem não gosta ou pratica as mesmas coisas que todo mundo – especialmente aquele vizinho que diz que não tem um computador.

Pais de outras crianças olham com piedade para os meus filhos quando digo que eles não vão ao McDonald´s nem assistem a Xuxa. Uma das tiras da Mafalda que o José Moacir mostrou era da escola toda em volta dela assombrada com o fato dela não ter televisão. Ele esqueceu de mostrar a tira em que o Manolito diz que não gostava dos Beatles (nunca esquecendo que a Mafalda foi publicada na segunda metade dos anos 60)

Provocador de danos sérios e reais : aqui entra o aspecto mais grave dessa história toda. Em busca da normalidade as pessoas tem perpetrado verdadeiras agressões contra seus filhos e seus alunos.

Apesar de estar muito envolvido com as questões da pessoas com deficiência (também massacradas pelos ideais e métodos de busca de normalidade), não são só elas que tem sido, literalmente, perseguidas naquilo que são consideradas desviantes.

Crianças de 6, 7 anos já começam a ser bombardeadas por volumes abusivos de conteúdo nas escolas. Precisam se preparar para esse mundo globalizado, o que é normal. Além disso têm uma agenda de atividades extra-curriculares de dar inveja a qualquer executivo de multinacional, claro, para ser normal precisa falar mais de uma língua, estudar alguma forma de arte, praticar esportes de forma organizada e competitiva (brincar em casa ou no páteo da escola não é considerado como atividade física saudável...). Isso é apenas o básico, o mais sofisticado inclui ainda aulas de informática, robótica, kumon...

E no final, são chamadas de crianças hiperativas ou com déficit de atenção. Ah, atualmente ser hiperativo é normal. Uma dose diária de ritalina resolve o problema, acompanhado, é claro, de mais atividades, as terapias.

Não importa que isso gere stress, mau comportamento, atitudes agressivas. Isso também é normal. Ainda que cause sofrimentos, doenças e, no limite, até mortes (ou acham que jovens dependentes de drogas, adolescentes que se matam no trânsito ou estudantes que entram em escolas armados são só anormais ?)

Qual a conclusão disso tudo ?

Eu não tenho nenhuma conclusão. Uma coleção de preocupações a respeito, mas não consigo visualizar algum caminho que possa mudar esse processo.

O mais grave é que eu estou começando a achar que esse meu ceticismo é normal.


*Fórum Regional de Inclusão Social do Circuito das Águas Paulista

Descrição da imagem : tira do Quino que mostra todas as crianças da escola da Mafalda olhando com espanto para o Manolito ao saber que ele não gosta dos Beatles.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Xiita Convidada - Marcas de professores

É lugar comum que os professores deixam marcas nas nossas vidas. Com esta constatação em mente, rebusquei algumas memórias e aqui estão exemplos de marcas que me ficaram, por experiência directa ou como espectadora, umas positivas, outras nem por isso... Como são vários os exemplos, estarão distribuídos por partes, sendo esta primeira dedicada a situações de avaliação.

1. Tinha-nos sido exigido, como uma das formas de avaliação para aquela disciplina, um vídeo em que simularíamos uma determinada situação profissional, feito aos pares, em que cada um dos elementos passava por dois papéis. A professora marcou um dia para nos dar feedback e o meu entusiasmo crescia à medida que ela ia falando: “estou bastante surpreendida, pela positiva, com a sua prestação”. Na minha mente começava a desenhar-se um 15... “Nunca pensei que uma pessoa com a sua deficiência visual pudesse mostrar tanta presença”. Quem sabe um 16 ou 17... afinal os pares que tinham ido antes de nós anunciavam óptimas classificações. “Saíram-se ambas muito bem, mas estou sobretudo satisfeita com o seu desempenho porque mostrou ter excelentes competências para este tipo de situação”. Será que atingiria o 18? Eu estava deliciada, feliz da vida. “Portanto, por este trabalho formidável, vou dar-lhe um 14, o que para uma pessoa como você é óptimo!”. Fiquei dormente, confusa. Infelizmente não tinha, nessa altura, a tranquilidade e a garra, que são necessárias em situações destas, para me defender. Houve, porém, muitas outras situações em que fui avaliada tal como os meus colegas, com os mesmos critérios e em que os resultados estavam em correspondência com o meu estudo e dedicação.

2. Para que exista igualdade de oportunidades na avaliação, é necessário dar determinadas condições em conformidade com as deficiências apresentadas. Assim, um estudante com deficiência pode necessitar de um período de tempo adicional para responder à sua prova. No Ensino Básico e Secundário, o Plano Educativo Individual (PEI) define o tempo que cada estudante pode utilizar, em função das suas necessidades. Para os exames nacionais, o tempo proposto pela Escola é aprovado pelo júri nacional de exames. No regulamento que prevê várias medidas de apoio relativas à frequência e à avaliação destes estudantes na Universidade do Minho, determina-se que este período de tempo suplementar vai até mais metade do total previsto para a prova.

Vejamos duas situações limite ocorridas com estudantes que apresentam deficiência visual. Um estudante foi informado, na hora da prova, pela professora (com conhecimento da condição de tempo), que ela teria um compromisso na hora prevista para o término da prova de qualquer outro estudante, pelo que ele teria de entregar também a sua prova nessa hora. Trata-se, obviamente, de um claro desrespeito dos direitos deste estudante. Mas que dizer do professor que decidiu que o aluno deveria realizar a sua prova numa sala sem vigilância, dizendo-lhe que poderia gastar o tempo que quisesse, bastava que no final entregasse as respostas a um funcionário, mas que se preferisse, poderia levar a prova para casa e entregar as respostas no dia seguinte? Estamos aqui perante uma permissividade que em nada dignifica estes estudantes, ao assumir-se que o facilitismo é o único caminho para que estas pessoas consigam progredir.

Portanto, sejam dadas condições específicas a quem delas precisa e exija-se o mesmo a todos. Só assim cada um pode mostrar o que vale.

Na primeira parte desta crónica, falei das marcas deixadas pelos professores em situações de avaliação a estudantes com deficiência, debruçando-me agora sobre algumas situações de aula.

1. É mais fácil, para qualquer um de nós, evitarmos uma situação com a qual não sabemos lidar do que procurarmos estratégias para lhe fazer face. Sendo a inclusão escolar de estudantes com deficiência um objectivo que implica iniciativa e trabalho, já soube de alguns professores que mostravam resistência à presença destes estudantes nas suas turmas. Estas reacções vão desde algum receio por não saberem bem como lidar com a situação até a negação explícita de darem aulas aquela turma. Assim foi o caso de um professor do ensino secundário que dizia num conselho de turma: “formei-me para dar esta disciplina, há vinte anos que a ensino e não tenho nada a ver com esses problemas da deficiência. Portanto, não é agora que me vão obrigar a trabalhar com deficientes nas minhas aulas”. Quão diferente é esta postura em relação com aquela de professores que perguntam aos próprios alunos, aos pais destes ou aos técnicos que lhes dão algum acompanhamento, como devem fazer para resolver uma ou outra dificuldade. Uma pergunta tão simples como esta faz que o estudante sinta que existe preocupação para com a sua situação particular e abertura para encontrar alternativas. É evidente que os próprios estudantes têm de ser também interessados e participativos de modo a reforçarem todo o trabalho e dedicação dos professores.

2. É compreensível que numa turma com muitos alunos, um professor se esqueça de usar todas as estratégias que lhe são recomendadas para a inclusão de determinado estudante. O que não se compreende é a ignorância propositada das necessidades visíveis. Numa aula de língua estrangeira, o aluno cego perguntou à professora como se escrevia o nome que acabava de dizer. A resposta foi imediata “está no quadro”. A experiência que passo agora a relatar é um excelente exemplo de uma atitude inclusiva. Tinha-me inscrito naquela disciplina por opção. No fim de uma aula, a professora disse-me que, na próxima, iríamos ver um vídeo e perguntou-me se me importaria que ela trouxesse uma gravação em cassete áudio (naquela altura os mp3 não estavam massificados), com a descrição do filme. Tal sugestão pareceu-me quase irrealista, tantas as vezes em que foram passados vídeos nas aulas e nenhuma vez aquela em que os professores se haviam preocupado muito com a minha presença ali, no máximo, lamentarem eu não poder vê-lo e sugerirem que pedisse a um colega para mo descrever, ou simplesmente dispensarem-me da aula. Assim, pensei com os meus botões se aquela ideia não seria apenas uma boa intenção sem consequências. Na aula seguinte, muni-me de leitor de cassetes e de auscultadores, mas estava já a preparar-me para uma sessão de divagação pessoal, caso a cassete não viesse. Enganei-me, felizmente. No amontoado de cassetes áudio que guardo com material escolar, está essa relíquia, gravada com a voz da professora com a descrição de um vídeo que, por uma vez, me foi dado acompanhar em simultâneo com os meus colegas.

3. No livro “Educação Inclusiva – o que o professor tem a ver com isso?”, coordenado por Marta Almeida Gil , é-nos dito que não existem receitas feitas para a inclusão e que as soluções vão sendo construídas, sendo-nos oferecidas muitas dicas e testemunhos de práticas inclusivas. Fica a sugestão.

Para terminar as crónicas dedicadas a marcas deixadas por professores em estudantes com deficiência, ficam algumas reflexões sobre como as expectativas, ou a falta delas, deixam as suas marcas.

1. A deficiência de uma pessoa produz muitas vezes nos outros expectativas ora negativas, ora demasiado positivas face às suas possibilidades de acção. Explicando melhor, ou assume-se como certo que a pessoa não conseguirá realizar a maior parte das actividades, devido a enormes dificuldades que se lhes antecipam, ou acredita-se que o conseguirão por ter características muito especiais, compensatórias, quase geniais, desvalorizando-se as necessidades que derivam de condições físicas ou sensoriais deficitárias. Assim, os professores poderão ter também este tipo de percepções, traduzidas em expectativas negativas ou excessivamente positivas. Ainda recentemente um colega cego contou-me que um professor, tendo conhecimento da sua boa nota num exame de admissão à Licenciatura, minimizava as suas dificuldades, inerentes à cegueira, para aceder à informação, afirmando que certamente ele iria sair-se sempre bem. Uma das coisas que conduz a estas crenças é a projecção que cada um de nós faz quando se imagina com as dificuldades de outro, supondo que para as superar são necessárias competências extraordinárias. Além disso, o facto dos estudantes com deficiência utilizarem tecnologias que são estranhas a muitos professores podem contribuir para esta ideia de que a pessoa é realmente excepcional.

2. Só nos dedicamos verdadeiramente naquilo face ao que temos expectativas positivas. Estas expressam-se num apoio efectivo por parte dos professores, quer através de estratégias pedagógicas flexíveis, de cedência dos materiais de estudo e de avaliação adequados, ou através de um simples estímulo numa palavra de encorajamento.

3. Pior do que a falta de formação específica sobre a temática, a falta de empenho e de imaginação, pior mesmo que tudo é o preconceito, expresso em expectativas negativas, que abalam a auto-estima de qualquer estudante. Exemplo disso são os professores que se perguntam, ou se atrevem mesmo a perguntar ao próprio estudante, o que está ali a fazer, que devia pensar noutra coisa para se ocupar, e que lhe apresentam o veredicto de incompetência perpétua. Quanta mágoa percebi em duas estudantes, utilizadoras de cadeira de rodas devido a paralisias distintas que afectaram a sua motricidade, ao contar-me que a sua professora da escola primária, num caso, e vários professores do Ensino Secundário, no outro, lhes haviam dito que não conseguiriam ir longe. E quanta dor naquela estudante universitária que relatava como uma sua professora a instigava a desistir ou a mudar de curso, alegando que a sua deficiência (note-se, a deficiência, não a competência) era incompatível com o desempenho de futuras funções profissionais.

4. Estas são memórias que ficam gravadas a ferro e fogo e podem servir como estímulo, incentivo, desinvestimento, raiva. Quanto mais vivencio e observo estas situações, mais comprovo que o que os estudantes anseiam é que acreditem neles. Não que os professores acreditem que um estudante com paraplegia ultrapassará qualquer obstáculo físico com boa vontade ou que um estudante com deficiência auditiva acompanhará as aulas sem ser necessária qualquer adaptação pedagógica. Apenas que se acredite nas suas possibilidades de avançar, de crescer. Faço votos que as expectativas realistas e o apoio eficaz ganhem terreno e destronem práticas e crenças destrutivas.


Sandra Estêvão Rodrigues, 34 anos, é psicóloga, trabalha no Gabinete de Apoio ao Estudante com Deficiência da Universidade do Minho em Portugal. É uma pessoa cega.

*Esse texto foi publicado originalmente em crônicas no Jornal Académico da Universidade do Minho

Descrição da imagem : foto de professora ensinando aluno a escrever na lousa

terça-feira, 10 de junho de 2008

Nós não queremos migalhas

...migalhas dormidas do teu pão , raspas e restos me interessam...
(Maior abandonado – Cazuza/Frejat)

O apaixonado Cazuza declarava estar satisfeito apenas com as migalhas que pudessem sobrar da mesa do objeto do seu amor, apenas um pouquinho de atenção seria suficiente para que ele deixasse de ser um maior abandonado, afinal, ter mais do que isso lhe parecia um sonho inatingível.

Infelizmente as minorias excluídas da nossa sociedade demonstram, a cada dia, que as migalhas dos serviços públicos e privados lhes tem sido satisfatórias, depois de tanto tempo sem ter acesso sequer às sobras, tudo que vem é lucro.

Alguns alegam que essa postura é apenas a cautelosa forma de comer a sopa quente pelas bordas, mas será que isso não é apenas conformismo ? Nós, que estamos envolvidos em um movimento que busca a inclusão, não deveríamos aceitar as migalhas do poder, mas dividir o pão com todos.

> Não queremos o favor e a comiseração de transporte público gratuito, queremos ônibus , trens e metrôs que sejam acessíveis a todos.

> Não queremos isenção de impostos, queremos uma distribuição de renda mais justa que permita a todos participarem do mercado de consumo.

> Não queremos cotas que nos concedam vagas em universidades, queremos uma educação de qualidade que nos dê as mesmas chances e oportunidades que as classes privilegiadas.

> Não queremos cotas que obriguem as empresas a nos empregar (coitadinhos de nós...), queremos formação profissional para nos candidatarmos de forma digna aos empregos.

> Não queremos filas especiais, queremos atendimento decente para todos.

> Não queremos educação especial que segregue aqueles que a sociedade prefere fingir que não vê. Queremos uma educação que seja especialmente qualificada para atender cada ser humano.

> Não queremos beneficência. Queremos respeito e acesso aos bens e serviços.

Enquanto continuarmos a pedir migalhas, o máximo que a sociedade vai nos conceder são exatamente elas. Pior, o poder vai continuar acreditando que está nos fazendo um grande favor.

Manter esse discurso é um problema ideológico, por que o que se esconde atrás dessa atitude é a rejeição da diversidade como valor humano e a perpetuação das diferenças entre cidadãos de primeira e segunda classes, ressaltando que suas diferenças são insuperáveis de uma forma determinista e, mesmo que dividam o mesmo ônibus, a mesma mesa e a mesma cadeira, seguem caminhos diferentes e, às vezes, opostos.

Descrição da imagem : cartoon de um pedinte dizendo : "uma esmola pelamordedeus"

terça-feira, 3 de junho de 2008

Inclusão(?) digital

Nos últimos tempos temos sido bombardeados por uma série de matérias, anúncios e eventos sobre a questão da inclusão digital. A necessidade de garantir a todos os cidadãos acesso a computadores e ao maravilhoso mundo da informação via Internet. É uma discussão, cuja abordagem tem me incomodado e que eu gostaria de compartilhar com os meus leitores.

Eu sou militante nas questões de inclusão educacional e no trabalho de pessoas com deficiências. A minha militância começou com um grupo de pais de crianças com Síndrome de Down e, aos poucos , fomos descobrindo que o problema da inclusão, ou melhor, o problema das várias exclusões é muito maior do que o universo dessas pessoas. Vivemos num mundo em que vários são os motivos que levam à exclusão : pobreza, raça, cor, sexo, deficiência.

Chegamos a um ponto em que , em muitas situações chegam à beira do ridículo quando lemos reportagens em famosas revistas de negócios a respeito de critérios de contratação que excluem até aqueles que são feios ou gordos.

Quando pensamos no Brasil , especificamente, algumas exclusões chegam a um ponto de tornar inútil toda a discussão sobre a inclusão digital. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que 11% dos brasileiros são analfabetos. Isso significa que existe no país um contingente de quase 16 milhões de pessoas, que não sabem ler nem escrever. Considerando que esse número é o “oficial” do IBGE e que, portanto, a realidade deve ser muito pior, podemos calcular que mais de 30 milhões de pessoas não sabem ler e escrever.

Em que processo digital é que elas vão poder ser incluídas ??

Além disso , estima-se que atualmente, ainda um quinto da população viva abaixo da chamada linha de pobreza (apesar de todos os programas sociais do governo, ou seja, esse número era pior ainda), sendo menos eufemístico, literalmente na miséria. Moram na rua ou em lugares sem nenhuma infra-estrutura sanitária. Comem a cada 3 dias, quando dá. Não tem acesso ao sistema de saúde. Mesmo assim, a elite (sim, se você está me lendo na tela de um computador, você é elite) da qual nós fazemos parte insiste em que é preciso incluí-las digitalmente.

O pior de tudo no discurso da inclusão digital é o fato que a mesma está sendo promovida e alardeada pelos maiores interessados economicamente na mesma, ou seja, os fabricantes de hardware e software, as escolas de informática, e por aí vai.

Isso me faz lembrar a primeira medida de Dom João VI ao desembarcar no Brasil , abrindo os nossos portos às nações amigas – no caso, a única nação amiga era a Inglaterra e se não houvesse essa abertura a corte portuguesa no Rio de Janeiro iria morrer de fome ou de tédio. Inclusão promovida por quem tem interesse econômico na mesma não é inclusão, é abertura ou ampliação de mercado.

A inclusão digital é uma necessidade de fato, e eu não sou um advogado contra ela. É a inclusão digital que tem tornado menos complicada a vida de muitas pessoas cegas (beneficiárias dos fantásticos programas de sintetização de voz), pessoas com dificuldades de locomoção e que tem dado qualificação e oportunidade profissional para milhares de pessoas.

Mas falar de democracia digital enquanto milhões de pessoas ainda não participaram da inclusão alimentar, da saúde e de moradia ainda me soa como uma hipocrisia.

Descrição da imagem : cartoon onde uma mulher pergunta : "Como está o programa de inclusão digital?" Um homem, na janela de uma casinha, com a placa ONG, responde : "Ótimo. Só no mês passado foram incluídos três dígitos na minha conta".