quarta-feira, 17 de junho de 2020

Tráfico de ilusões




We are the hollow men 
We are the stuffed men 
(T.S. Eliot) 



Todo mundo quer ser diferente ou, pelo menos, todo mundo que parecer diferente do resto do mundo.

Não somente se diferenciar, mas conseguir colocar-se como alguém de destaque no seu contexto social em função dessa diferenciação.

Essa é uma questão que faz parte da essência e da natureza humana e não é nenhum pecado mortal pensar assim. Somos parte de um todo enquanto sociedade e, ao mesmo tempo, cada um de nós é um indivíduo peculiar.

Segundo Norbert Elias “esse ideal faz parte de uma estrutura de personalidade...e essa forma de ideal de ego e alto grau de individualização são partes integrantes do seu ser, uma parte de que não podem livrar-se, quer aprovem ou não.”[1]

Traços de personalidade podem trazer egos de diversas potencias e graus de individualização também, mas os dois traços são controláveis e educáveis de forma crescente a depender do nível de consciência e de práticas específicas de longo prazo. Por isso nas educações familiares podemos ter pessoas mais ou menos competitivas a depender do tipo de educação que tiveram em casa.[2]

O que não significa que todos vão conseguir se destacar por algum desses diferenciais. Contexto, formação e oportunidades para tanto não estão disponíveis para os 8 bilhões de habitantes do planeta.

Diferentemente das expectativas individuais, só uma pequena minoria vai conseguir atingir uma posição de destaque, seja ele intelectual, econômico-financeiro ou profissional.

Vários estudos convergem para uma distribuição de população mundial onde somente até 5 % são pessoas com perfil para provocar mudanças e liderar mudanças. Outros 20 + % estão prontos para seguir as mudanças, na outra ponta somente 5% são pessoas não afeitas a mudanças e não mudam mesmo com estímulos e outros 5% são contra , tipo pau na roda , e a diferença muda com a tempo pela influência dos 25 + primeiros , os puxadores e seguidores.[3]

A questão gira em torno de ter a chance de atingir tal posição. Não se trata apenas de querer, nem poder, mas de atrapalhar alguns a chegarem lá. Não dá para negar que uma grande parte da população tem tudo contra ela. Partem do -10, enquanto outros partem do zero.[4]

Esse é um conflito real existente em toda e qualquer sociedade. O desejo de ser em disputa com a impossibilidade de ser. É um dos trágicos elementos fundamentais da vida com os quais o ser humano precisa aprender a lidar: perda, tristeza, dor, já explicava Freud.

Quanto mais rica uma sociedade, mais presente é essa busca competitiva por uma posição de destaque, e mais feroz a competição para alcançá-la.

De qualquer forma, desenvolvimento é diferente de crescimento econômico. Nas nações mais desenvolvidas, o apetite existe, mas é menos exacerbado, justamente pelo fato dos cidadãos terem um bom colchão social, justiça, bons serviços públicos e pouca disparidade salarial. É justamente nos menos desenvolvidos (sejam economias grandes ou não), isso é muito mais feroz pois, mais que status, esse destaque é necessário para não sofrer com as agruras dos "normais”.[5]

Nesse percurso pululam as histórias de sucesso de todos os tipos, como se os exemplos dos bem sucedidos servissem como a poção mágica de Panoramix[6] dando poder e força a todos que a bebessem.

A falsa ilusão de que todos podem tudo. A deslavada mentira que apregoa que os que não alcançaram o Olimpo do sucesso, são derrotados por falta de vontade ou de positividade.

Aqui começa a epidemia de frustrações que abrange pelo menos 50% da população das pessoas que trabalham. Frustração gera o estresse e esse, se forte e durável, só joga contra quem já não chegou onde queria chegar.[7]

Como vimos acima, a vontade é inerente a todos, então o problema do insucesso passa a ser essa visão cética, pessimista, derrotista que permeia os que não atingiram suas metas.

A força que leva ao vício

Eu tenho a força, bradaria o He-Man[8]. A força esteja com você, desejavam os personagens de Star Wars[9].

Desde que Norman Vincent Peale lançou o seu “Poder do pensamento positivo” na década de 1950, esse tem sido o mantra de muitos motivadores de pessoas. Querer é poder, basta ter uma atitude positiva em relação a seus desafios.

Os pseudo humanistas da auto ajuda (não confundir com os humanistas do Renascimento), que defendem a ideia de que o ser humano é o seu próprio deus, prometem poderes ilimitados a quem seguir suas recomendações.

Os humanos que não encontram nenhum outro caminho para atingir seu sonho de destaque diferenciado o que, como vimos, não são poucos, acabam enredados nessa trama.

Experimentam um, não funciona. Tentam outro mais potente, não funciona. A cada dia buscam uma vertente mais forte, até estarem irremediavelmente dependentes desse tipo de doping.

A positividade tóxica

Em “A sociedade do cansaço”, o filósofo Byng-Chul Han descreve uma sociedade que está sendo intoxicada pelo excesso de positividade.[10]

É um livro curto, denso, cruel e, em não poucos momentos, chocante.

Muito chocante, eu diria, não pela linguagem ou pelas imagens que evoca, mas pelo fato de que, à medida que o lemos, vamos associando sua descrição com a realidade cotidiana que vemos, especialmente, mas não somente, na redes sociais.

Todo o enredo aplicado em meritocracias mal formuladas, o modelo de gestão de pessoas nas empresas e tudo o mais veio antes das redes . Mas estas sem dúvida alavancam frustrações adicionais e aceleram os efeitos perversos das narrativas alucinantes e ilusórias.[11]

Humanos que perdem todas as suas defesas imunológicas em relação ao negativo e, assim como vírus e bactérias, coisas negativas estão à nossa volta o tempo todo, prontas para atacar os mais vulneráveis.

Pessoas que insistem em mostrar o tempo todo que tudo está bem. Criação contínua de personas[12] que necessitam desesperadamente fingir que, como são positivas, nunca sofrem derrotas.

Sem anticorpos para o negativo isso acaba afetando a saúde mental dessas pessoas. Até porque, saúde mental não é viver em um estado positivo permanente, mas saber lidar com o outro lado da força.

A metáfora é ingênua e simplista, no entanto, é válida. Uma pilha comum não vai transmitir energia se não estiver conectada, simultaneamente, nos seus polos positivo e negativo.

É uma questão dialética, assim como o conflito entre a vontade de individualização e suas forças contrárias, o que constrói o sistema de defesa da saúde mental é o conflito positivo-negativo. Sem esse sistema, não existem barreiras de proteção.

A positividade excessiva é tóxica pois destrói (ou deixa de construir) esse sistema de defesa, abrindo as portas para todo tipo enfermidades mentais e emocionais: depressão, déficit de atenção, Burnout, pânico.

Han mostra como o excesso de desempenho, para sustentar a persona é intoxicado pelo excesso de positividade, conduzindo para um infarto da alma, “a perda da energia essencial que permeia corpo, mente e espírito de tal forma que é condição de uma morte do ser humano essencial por falta de irrigação de energia.”[13]

Positivo com positivo só dá positivo na matemática. Na vida real “quem vive do igual, também perece pelo igual”.[14]

Estamos construindo, seguindo esse percurso, a tal da sociedade do cansaço que vai acabar desaguando na sociedade do esgotamento completo.

Existe cura?

“...o que nos humaniza é o fracasso, homens e mulheres muito felizes não são homens e mulheres.”[15]


Já nos primeiros textos existencialistas, constatamos que somos seres em um mundo cheio de possibilidades, sem que algo anterior (uma essência) nos defina e, uma vez que a nossa vinda à existência acontece antes de construirmos a nossa essência, caímos num vácuo de significado.

Nós somos jogados em um mundo inundado de escolhas para sermos o que quisermos, mas em meio a essa infinidade de caminhos nos perdemos na angústia de não saber qual trilhar.[16]

O risco de tentar fugir dessa angústia através de mecanismos de escape – e, nesse aspecto, a positividade tóxica nada mais é que uma tentativa de fuga – não funciona.

Não funciona porque, inevitavelmente, a positividade tóxica (ou qualquer outro mecanismo de escape) vai fracassar e, ao voltarmos ao ponto de partida, a angústia se transforma em desespero, e conduz às doenças psicológicas mencionadas.

Não pretendo aqui defender as teorias conformistas que defendem a total falta de ação diante de um mundo hostil.

Entendo que o único caminho para a cura ou, pelo menos, a reconstrução de um sistema imunológico mental, é o desenvolvimento (ou recuperação) da capacidade de lidar com o lado negativo da vida e, no confronto dialético com o positivo, atingir um equilíbrio mentalmente saudável.

Recuperação sem ajuda é muito difícil. Estamos falando de um processo que pode e deve levar anos de esforço permanentes pois precisa de novos caminhos sinápticos, novos hábitos que transformem comportamentos e modelo mental de pensamento. Por isso o esforço solitário é quase um fracasso garantido , o sucesso será para minorias privilegiadas no cérebro que inclui a flexibilidade , adaptabilidade ,controle emocional ,empatia consigo mesmo, ou seja , muito auto conhecimentos e diversos cardápios recomendados para cada ponto a desenvolver , cardápio este baseado em ampla base de pesquisa no campo da psicologia, psiquiatria, pedagogia , antes mesmo de falar em receituário tópico para patologias instaladas, pois se este for o caso a farmacologia pode ser chamada também. [17]

Isso não se constrói com manuais de instrução e receitas de bolo. Não está no radar dos traficantes da ilusão da felicidade completa e permanente, até porque não gera a dependência que os enriquece.

É um exercício crítico individual. Cada pessoa deve procurar seus próprios caminhos para se equilibrar. Sejam eles solitários para os que assim o conseguem, seja com ajuda séria e, obrigatoriamente, do ramo. Ajuda dos vendedores de ilusão não é considerada séria.

Não é uma garantia de um mundo melhor, só a possibilidade de um mundo menos doente.


© Fábio Adiron 2020

Agradecimentos

Além das preciosas intervenções do Ricardo Costa e do Marcos da Cunha Ribeiro citadas durante o texto, gostaria de agradecer as não menos preciosas colaborações da Virginia Susana Fantoni, da Atena Nardy e do Volney Faustini e seus olhos de lince.

[1] ELIAS, Norbert. Problemas de autoconsciência in A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro. Zahar. 1994
[2] Contribuição de Marcos da Cunha Ribeiro
[3] Contribuição de Marcos da Cunha Ribeiro
[4] Colaboração de Ricardo Costa MBA
[5] Colaboração de Ricardo Costa MBA
[6] Panoramix é um personagem das histórias de Asterix, o gaulês de Uderzo e Goscinny. Um druida que tem o segredo da poção mágica que torna todos os que a bebem, invencíveis. (NA)
[7] Contribuição de Marcos da Cunha Ribeiro
[8] Originalmente um brinquedo da Mattel, atingiu sua popularidade na série de desenhos animados na década de 1990
[9] Star Wars é uma série de filmes de George Lucas. O primeiro deles foi lançado em 1977 e se tornou uma das franquias cinematográficas mais bem sucedidas da história.
[10] HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis. Editora Vozes. 2017
[11] Contribuição de Marcos da Cunha Ribeiro
[12] Na teoria de C.G. Jung, personalidade que o indivíduo apresenta aos outros como real, mas que, na verdade, é uma variante às vezes muito diferente da verdadeira, deriva da etimologia grega do termo, persona=máscara. (NA)
[13] Adendo de Marcos da Cunha Ribeiro
[14] BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal. Campinas. Papirus. 2000
[15] PONDÉ, Luiz Felipe. Contra um mundo melhor. São Paulo. Contexto. 2018
[16] Minha leitura pessoal da teoria de Kierkegaard (NA)
[17] Contribuição de Marcos da Cunha Ribeiro