quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Mariazinha tomou pau no maternal

Mariazinha tem 4 anos e ontem sua mãe foi chamada pela diretora da escola para ser informada que a menina repetiu de ano e vai ter de fazer novamente o Maternal II.

Apesar da escola se dizer sócio-construtivista-interacional moderninha os professores e a coordenação, usando de métodos de avaliação que já preparam a criança desde a mais tenra idade para o vestibular da Fuvest, concluíram que ela não aprendeu todos os conteúdos para ser promovida ao jardim de infância.

Mariazinha não foi aprovada no teste de corre cotia uma vez que ela não conseguiu captar o conceito do que é um cipó, até porque na casa da sua avó não tem cipó nenhum. A mãe deu essa explicação, mas a coordenadora alegou que essa é uma visão freireana da educação, coisa de comunista.

Além disso, mesmo que desconsiderassem a questão do corre cotia, a escola concluiu que a petiz ainda não estava madura para mudar de ano, já que, apesar de saber o nome de todas as cores, ela se recusava a copiar uma tela de Kandinsky. A mãe perguntou quem era esse mas só recebeu um olhar de comiseração da coordenadora.

Segundo a escola, o Jardim I incluírá temas bem mais complexos, como o jogo de amarelinha, que demandará conhecimento de matemática complexa (contar até 10) e também de filosofia da religião (para distinguir entre o céu e o inferno).

A essa altura você deve estar em dúvida se meu texto se refere a esse blog mesmo, ou deveria estar publicado junto com as minhas Insanidades.

Sem dúvida é um absurdo, mas é um absurdo que está ocorrendo todos os dias em escolas espalhadas pelo país. Se a criança ainda tiver alguma deficiência a situação se agrava, pois a escola acha que quem vai resolver essa situação é o geneticista ou a fonoaudióloga da criança.

Geralmente em escolas que se dizem Vygotskyanas, sem nunca sequer terem passado perto de um texto do autor russo. Se tivessem lido alguma coisa saberiam que para Vygotsky é o próprio processo de aprender que gera e promove o desenvolvimento das estruturas mentais superiores.

Ou seja, a criança não precisa de desenvolver para aprender. Precisa aprender para se desenvolver.

Essas escolas não estão preocupadas em ensinar. Entregam uma inclusão de araque, ao exigirem que as crianças se preparem para a escola e não o contrário. Escolas que não querem questionar seus dogmas imortais. Nem enfrentar o preconceito que negam de pés juntos.

Essas mesmas escolas são as que estão preparando as crianças sem deficiência a serem cidadãos dos séculos XIX e XX com sua pedagogia caduca e seus métodos arqueológicos. Escolas assim mereceriam ser fechadas. Educadores assim, requalificados para outras profissões que não necessitem conhecimento do ser humano.

Para isso é necessário que os pais deixem de acreditar nesse tipo de absurdo e exijam educação de verdade para os seus filhos. Com ou sem deficiência.

Descrição da imagem: desenho de duas meninas brincando de amarelinha, um jogo de casas riscadas e numeradas no chão, cujo objetivo e pular os números e sair do inferno para chegar ao céu.

domingo, 22 de novembro de 2009

Xiita Convidada - A escada

Seminário: Acessibilidade no Patrimônio Histórico e Cultural
Organização: CREA-Bahia e Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia
Salvador, 19 de novembro de 2009
DIFICULTADORES ARQUITETÔNICOS E URBANÍSTICOS:
A ESCADA E O SEU PAPEL NO PATRIMÔNIO EDIFICADO

Arquiteta Flavia Boni Licht*

Muito mais do que uma questão de cadeira de rodas, a acessibilidade é a essência da arquitetura levada às últimas conseqüências. As pessoas não contemplam a arquitetura, mas criam o espaço com os seus movimentos, desde aqueles que se fazem numa cozinha até os de uma procissão saindo da catedral. Não há espaço arquitetônico sem pessoas. Sem elas o arquiteto apenas sonha. Essas são idéias que podem servir de pistas para pensar na arquitetura do passado, do presente e do futuro. Arquiteto DEMETRIO RIBEIRO

Ao aceitar o convite para falar neste seminário sobre o papel da escada no patrimônio edificado, me vi frente a uma encruzilhada. Um dos possíveis caminhos, talvez o mais simples, me levaria a trazer exemplos fotográficos de variadas escadas para debater como um único elemento presente nas edificações e nas cidades, históricas ou não, ao lado de sua função de articular espaços, pode ser gerador de dificuldades e de impossibilidades na vida das pessoas.

O outro trajeto – aquele que escolhi e que acredito ter sido a intenção dos organizadores deste evento – foi o de entender e trazer à nossa discussão a escada como materialização simbólica de um conjunto de conceitos que, da configuração do edifício à sua inserção no entorno urbano, passam pelo lugar que ocupa como possibilidade construtiva e aglutinador de usos, como gerador de imponência e valor desejado na busca de distanciamento, como definidor de itinerários e expressão de movimento e, aqui mais especialmente, como elemento de segregação e de exclusão.

Assim, inicio me socorrendo em segmentos da nossa história, talvez, mais especialmente, em segmentos da nossa história como construtores, que, atuando sobre o ambiente natural, deixamos ali os sinais do nosso conhecimento, das nossas crenças e, também, dos nossos preconceitos.

Então, tomando nossa civilização aos saltos, comecemos com os egípcios que, ao empilhar imensos blocos de pedra, encontraram nos degraus, a possibilidade de concretizar suas pirâmides. E não só externamente. No interior daqueles monumentos, o desejado repouso eterno do faraó foi protegido por complexos labirintos num intrincado jogo de níveis que se articulavam por meio de alguns ou de muitos degraus. Ou seja, as escadas se faziam presentes para guardar segredos e preservar tesouros, mas também para dificultar passagens e obstaculizar acessos.

Seguindo nossa viagem, chegamos à Grécia, onde a escada adquire um protagonismo inquestionável, pois o desejo de sentir-se o mais próximo dos deuses levou aquela civilização às alturas. Seja, por um lado, na escolha dos sítios para edificar seus monumentos mais simbólicos; seja, por outro, nos próprios templos dedicados às divindades, sempre construídos sobre plataformas elevadas precedidas por altos degraus. E como seus antecessores egípcios, também na Grécia as imponentes escadarias tornavam real o distanciamento pretendido entre alguns – poderosos e olímpicos, que chegavam até a desafiar limites entre deuses e homens – e outros tantos, certamente a maioria, o povo, os escravos. Isso no próprio “berço da democracia”, onde também aqueles que se distanciavam dos ideais definidos como da perfeição física eram sumariamente sacrificados.

Nos séculos seguintes, a busca da inacessibilidade para configurar proteção mantém-se presente nas fortificações amuralhadas, com muitos degraus para vencer terrenos íngremes. Esses mesmos degraus também possibilitaram ainda que os edifícios se descolassem do solo em locais menos salubres, quando a preocupação com a saúde pública começou a dar seus primeiros passos. E o caráter que ambicionava a distinção dos comuns e a expressão de majestade, separando do nível vulgar as casas mais nobres, encontra nas pomposas escadarias a formatação própria para se explicitar.

Concluindo esse rápido percurso, chegamos aos dias de hoje onde, mesmo com ideais distintos dos nossos antepassados, seguimos buscando as alturas, não mais empilhando apenas pedras para enterrar reis, mas sim completos espaços para todas as funções e usos do nosso cotidiano; não mais para chegar perto dos deuses, mas sim para rentabilizar os terrenos cada vez mais valorizados dos nossos centros urbanos. E chegamos aos dias de hoje também com uma variada herança de edificações e cidades, produto de diversas culturas, com múltiplas visões de mundo e de sociedade, com variadas representações estéticas e diferenciadas soluções construtivas, herança essa que nos cabe preservar e passar adiante, associando ao existente nossas habilitações e nossos valores.

O que antes era feito para segregar e dificultar, nos dias atuais, contrariamente, o que se quer é reunir e facilitar; o que antes era feito apenas para alguns, o que se quer hoje é que valha para todos. Pelo menos, é o que afirmam as cartas constitucionais da maioria dos países. Inclusive a do nosso.

Examinando, então, os impedimentos de mobilidade que criamos ao longo da história dos nossos ambientes edificados, acredito que podemos dizer, sem medo de errar, que conhecimento acumulado para superá-los não nos falta. Hoje, os desníveis históricos, antes vencidos apenas por conjuntos menores ou maiores de degraus, podem encontrar alternativas nas mesmas soluções desenvolvidas para resolver a verticalização mais contemporânea que gerou imensas distâncias da base ao topo das edificações e trouxe problemas de deslocamento para todos. Como consequência, rapidamente, disponibilizamos a nosso favor a tecnologia existente, criando opções mecânicas para vencer esses obstáculos e seguir nosso percurso ascensional, com menos conotações religiosas e reduzido esforço físico. E aqui mesmo, nesta cidade, temos um exemplo bastante representativo dessa conquista: o Elevador Lacerda, desde finais do século 19, estabelece um ponto de conexão entre os dois segmentos de Salvador afastados pela morfologia urbana e é impensável para a quase totalidade das pessoas vencer a pé a distância entre a cidade alta e a cidade baixa.

Claro está que, para toda essa mobilidade conquistada, apostamos na manutenção de um delírio sem qualquer olhar para a escassez energética que, atualmente, já começa a nos preocupar. Vale pensar no que seria de nós para viver, trabalhar, ir ao cinema, à escola, ao médico nos edifícios e cidades contemporâneas se alguém simplesmente apagasse a luz... Inúmeros andares a subir ou descer por escadas em qualquer edifício seriam uma relevante barreira para todos nós. Este colapso inimaginável é apenas parte das dificuldades vivenciadas cotidianamente por uma parcela significativa da população ao se deparar com um desnível no meio-fio sem rebaixo ou uma escadaria na entrada de um museu, por exemplo.

Chegamos, então, no que acredito mais fundamental para a nossa discussão:

§ Quais os valores que ainda nos levam a deixar sem solução um ou muitos degraus a marcar a entrada de um monumento, decidindo, de forma concreta, quem tem e quem não tem direito de ali entrar?
§ No que acreditamos ao elaborar leis e normas que se, por um lado, exigem acessibilidade em todos os espaços edificados contemporâneos, por outro, abrem exceções para os chamados bens patrimoniais?
§ A quem é dado o poder para tomar essas decisões?

E como o foco deste seminário é acessibilidade e patrimônio edificado, parece importante trazer alguns questionamentos direcionados ao significado dessas expressões. Acredito que, referindo-se à acessibilidade, estamos todos de acordo: independente da idade ou da condição física, a acessibilidade é o direito que todos devem ter de compreender um espaço, relacionar-se com os seus conteúdos e usar os seus elementos com autonomia e independência. Já na questão do patrimônio e de como ele deve ser mantido hoje para as futuras gerações, as posições se mantém controversas: alguns ainda defendem que qualquer bem só terá seu valor preservado se restabelecer a unidade da edificação do ponto de vista de sua concepção e legibilidade originais; outros, hoje em maior número, nos ensinam que as intervenções, incluindo novas destinações, serão bem-vindas se o objetivo for o de assegurar a sobrevivência dos monumentos.

Assim, de questionamento em questionamento, seguimos perguntando:

§ Como se define e quem define o estágio de integridade a ser mantido?
§ Qual o significado de ‘possibilitar intervenções para assegurar a vida de um monumento’?
§ O que entendemos por ‘vida de um monumento’?
§ Quais intervenções seriam aceitáveis?
§ Será que é possível respeitar o passado de uma edificação, desrespeitando os direitos das pessoas, selecionando com nossas decisões de restauro, quem pode ou não desfrutar de um patrimônio que é de todos?

E, talvez pior, isso pode ser feito com todo o amparo da legislação específica – caso da NBR 9050/2004 da ABNT, que abre exceções para os bens tombados, e da Instrução Normativa nº 01/2003 do IPHAN que as confirma.

João Filgueiras Lima, o respeitado e querido arquiteto Lelé, que enriqueceu com sua sensibilidade esta e tantas outras cidades brasileiras, nos indica um bom caminho a seguir. Nas suas memórias profissionais, aprendemos que certas coisas não estão escritas no manual, fazem parte da consciência crítica de cada um. Ou seja, podemos entender acessibilidade como questão de ética profissional, pois assumimos como compromisso que nosso trabalho deve ser sempre colocado a serviço da melhoria da qualidade de vida do homem.

Também na contramão das citadas decisões normativas e legais, o arquiteto Antonio Cravotto – representando a Comissão do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural do Uruguai, no 2º Seminário Ibero-americano de Promotores e Formadores em Acessibilidade ao Meio Físico, realizado em Montevidéu – já em 1990 apresentava um entendimento bem distinto:
em termos práticos, os bens patrimoniais só podem ser salvaguardados se usados apropriadamente no presente, se reabilitados para atender funções adequadas à sua natureza e conformação, o que vai desde a contemplação (no caso das ruínas) até as formas mais especializadas e complexas. Para tanto, todos esses bens serão necessariamente afetados por: modificações espaciais e estruturais; incorporação de elementos, dispositivos, sistemas e redes técnicas; inclusão de equipamentos e de sinalização. Essas intervenções não possuem justificativa nem melhor nem diferente das originadas pela eliminação das barreiras para pessoas com deficiência. [...]

Para tanto, recomendo uma ‘regra de ouro’ orientadora, que os ‘técnicos’ rotineiros e pouco imaginativos – os quais, desgraçadamente, abundam – considerarão seguramente vaga e pouco prática: ‘respeitar o homem e respeitar suas obras’.

Então, com o apoio das palavras do professor Cravotto, podemos voltar ao foco do nosso tema e examinar o tombamento e o posterior restauro de uma residência significativa de qualquer uma de nossas cidades. Vencidos todos os procedimentos legais, o bem é tombado e, para possibilitar a sua sobrevivência, transformado, de imediato, em sede de alguma instituição cultural, ou seja, já foi aprovado sem discussões um novo uso para a edificação; os projetos e as obras, referendando essa mudança, indicam e executam modificações em planta, alteram redes e inserem equipamentos exigidos pela segurança e conforto contemporâneos, renovam rebocos, pintam alvenarias, trocam vidros quebrados e madeiras atacadas por cupins, derrubam árvores do jardim para criar estacionamentos, retocam ou refazem pinturas murais, substituem o mobiliário residencial pelo institucional.

Cabe, assim, perguntar: o que sobrou de original? Apenas a entrada principal, marcada por uma intocada escadaria – claro que depois de polidos seus mármores ou seus bronzes... E se alguém se aventurar a discutir o obstáculo representado por aqueles degraus e a necessidade de encontrar soluções para fazer daquela entrada o acesso principal para todos, já sabemos que a resposta será instantânea e praticamente uníssona: ah, nisso não dá pra tocar, pois, além de caro (e o custo torna-se, instantânea e magicamente, um impedimento decisivo) qualquer interferência na fachada vai desvirtuar as referências históricas desse bem tombado!

Há mais de vinte anos, o arquiteto I. M. Pei foi chamado a intervir num dos inquestionáveis patrimônios da humanidade, o Museu do Louvre. Feito jóia rara, sua pirâmide em aço e vidro define o novo e monumental acesso para aquele igualmente monumental conjunto. Dominando o espaço interno lá está, como um imenso grupo escultórico, a fusão entre elevador e escada, a incorporação do movimento livre à estrutura estática, provando que há possibilidade de tornar acessível a todos um bem histórico e cultural sem desqualificá-lo; provando que temos capacitação, criatividade e audácia. Talvez nos falte apenas aceitar a necessidade de desmontar os resultados da nossa cultura excludente, mudando a direção do nosso olhar para, rompendo hábitos e costumes, tomar a decisão definitiva de abrir os espaços para todos.

Temos pela frente um grande desafio, mas também uma oportunidade rara de reunir o importante passado expresso pelos bens patrimoniais edificados à visão contemporânea de respeito ao diverso que nos brinda a acessibilidade, para repensar o que queremos que fique como nossa herança. Para tanto, inicialmente, teremos que, “acessíveis” e “patrimoniáveis”, nos despir das nossas carapaças ortodoxas para estabelecer um diálogo franco que compatibilize conceitos, encontre identidades, equilibre posições e construa circunstâncias sempre, como nos iluminou o mestre Cravotto, na direção do respeito ao homem e às suas obras.

* Flavia Boni Licht - Arquiteta, especialista em acessibilidade e representante titular do IAB-RS na Comissão Permanente de Acessibilidade de Porto Alegre.

Descrição da imagem : Gravura do pintor M.C.Escher, denominada "Subindo e descendo", onde aparece um edifício com escadas em todas as direções e pessoas sem face caminhando nas mesmas.

sábado, 21 de novembro de 2009

Olhares doloridos

Um soco na boca do estômago. Aliás, um não, seis socos em seguida na boca do estômago nos últimos dois dias. Alguns deles bem doloridos, diga-se de passagem.

O mais incrível é que o responsável por esses golpes é pequeno e fino. Um livrinho de pouco mais de 100 páginas, escrito por um ex-professor de faculdade que eu reencontrei nos caminhos inclusivos.

Não é um livro sobre inclusão. Não daqueles livros acadêmicos ou apologéticos sobre o tema. É um livro sobre a ilusão da normalidade, sobre a expectativa da normalidade, sobre os males que a imposição da normalidade provoca.

São seis contos. Nenhum deles com uma temática inédita. Variam do cotidiano de um adolescente, cenas burocráticas de escritório, relacionamentos pessoais. Mas cada uma dessas situações vista por uma óptica em que, apesar do autor chamar de plausível, é muito diferente do que estamos acostumados a ler.

Mais do que isso, é muito diferente da nossa forma de olhar o mundo. Até porque, o que exatamente é ser diferente? Confrontar o status quo? Se isolar em mundos imaginários? Vestir máscaras provisórias ou permanentes? E o que exatamente significa ser normal?

O livro se chama "Olhares plausíveis", o autor Gregório Bacic (diretor do programa Provocações, dentre muitos outros atributos do seu currículo), cuja a leitura eu recomendo só aqueles que estão dispostos a enfrentar seus próprios valores e preconceitos.

Os que preferem continuar em busca da normalização das pessoas e do mundo devem ficar longe dos textos do Gregório.

Descrição da imagem: reprodução da capa do livro, uma série de traços em tons de amarelo e laranja e, entre eles, se vê um pedaço de um rosto com dois canudinhos.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Um mundo de Geisys

Muito se falou (e ainda se falará), sobre o caso da moça que foi expulsa da universidade (cujo nome não merece menção) depois de ser vítima de assédio moral e, não fosse a intervenção da polícia teria sido vítima de agressão ou, até mesmo, de abuso sexual.

O assunto já foi muito analisado e discutido em diversos fóruns, não vou entrar nesse debate.

O ponto ao qual quero me ater é o seguinte: a moça foi condenada por ser vítima, ou seja, duplamente agredida, num primeiro momento pelos colegas, no segundo por uma instituição que preferiu se livrar de um problema a resolvê-lo. Pior, alegou questões de valores e de ética para detonar com qualquer hipótese de respeito ao direitos humanos.

O que aconteceu com a Geisy chamou a atenção pela cobertura dada pela mídia ao caso. Mas não é nenhuma novidade. Acontece todos os dias com as pessoas com deficiência que são condenadas por terem características que incomodam os demais.

Todos os dias, crianças com deficiência são recusadas ou convidadas a se retirar de escolas, porque não são compatíveis com os valores que essas mesmas escolas dizem ter. Escolas que preferem culpá-las por suas deficiências do que tentar entender a atender a diversidade.

Todos os dias, colegas e pais de colegas preconceituosos assediam as escolas (especialmente as particulares) reclamando da presença de pessoas com deficiência nas suas salas. Todos os dias, escolas aceitam a pressão desses mesmos colegas e pais (em nome do dinheiro que eles pagam, é claro, assim como foi o caso da menina da universidade).

Todos os dias pessoas com deficiência são expulsas (ou recusadas) de ônibus cujos motoristas não querem perder tempo abaixando e levantando plataformas. Todos os dias passageiros sem deficiência comemoram o tempo que não perderam para as pessoas com deficiência embarcarem.

Todos os dias pessoas com deficiência são eliminadas de processos de recrutamento e seleção porque são culpadas das empresas não terem acessibilidade física, de comunicação ou, pelo simples fato de que os possíveis colegas de trabalho não vão se adaptar à presença delas no ambiente de trabalho (lugares onde vemos muito valores como solidariedade, colaboração, respeito, não é mesmo?).

Todos os dias pessoas são expulsas do acesso à cultura, à comunicação, ao lazer. São culpadas por não enxergar, ouvir ou compreender os valores distribuídos nesses canais.

A mídia, os blogs, os políticos, os poderes públicos estão se mobilizando pela Geisy e contra o que significou a atitude da escola.

Será que alguma hora vão se lembrar das demais 24,5 milhões de Geisys que temos espalhadas pelo país?

Descrição da imagem: gravura de uma multidão promovendo o linchamento e enforcamento de um homem negro.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Filhos, esses enjeitados

Por que alguém (no caso, alguéns) coloca um filho no mundo? Claro, muitos nascem, alegadamente, por descuido, como se as pessoas não soubessem exatamente como se dá o processo de produção.

Mas, pensando nos filhos gerados intencionalmente, eu já ouvi as mais diversas explicações.

Alguns alegam que os filhos são a reafirmação dos sonhos e de ver neles realizado tudo aquilo que um dia sonharam para si mesmos. Ou seja, não passam de instrumentos para manobrar suas próprias carências psicológicas.

Outro argumento sujeito as críticas é o da necessidade de satisfação do instinto materno: a recusa de uma mulher em procriar é vista quase que como uma ofensa social. Nesse caso a pressão social é um componente significativo. Alguns os têm por questões de sobrevivência econômica, acreditando que os filhos serão o suporte para a velhice. De novo, um argumento egoísta e, na maioria das vezes, falaz.

Existem casos de filhos que foram usados como possível amarra para casamentos falidos. Os pedantes alegam questões antropológicas de preservação da espécie. A psicologia de cozinha garante que é só para ter uma boneca de verdade para se brincar.

Nenhuma das explicações que eu li indicaram que alguém faça filhos pensando neles. Aliás, os que pensam no futuro das crianças são os que mais relutam em tê-los. A questão em que poucos costumam lembrar é a de que filho dá trabalho. E, cá entre nós, ninguém está muito a fim de trabalhar.

Os bichinhos precisam comer, são carentes de atenção, não poucas vezes ficam doentes. Para completar, uma hora tem de ir para a escola.

Esse é o momento em que os pais acham a sua tábua de salvação. Finalmente encontram um lugar para terceirizar as crias. E a escola que dê conta de fazer tudo aquilo que eles, pais, não estão dispostos a investir seu tempo.

O que é apenas mais uma demonstração do egoísmo original. Filho é ótimo, desde que não atrapalhe a minha individualidade, que não tome o tempo que eu poderia estar usando em atividades mais prazeirosas.

Se a situação já não é boa para os filhos em geral, piora muito quando o filho tem alguma deficiência. Aí é que os pais querem mesmo é se safar deles (claro, nem todos são tão cruéis a ponto de descartá-los), o trabalho é maior, o investimento de tempo muito maior, a necessidade de atenção é imensa.

Por isso não é nada surpreendente que tantos pais sejam contrários à inclusão de seus filhos em escolas comuns. Preferem se livrar deles das 7 às 18h largando em qualquer lugar que prometa que vai tomar conta deles, ainda que esses mesmos lugares não façam das crianças seres humanos de verdade. Jogam os filhos em depósitos de crianças com deficiência e, se pudessem, nem voltariam lá para buscá-las.

Preparar esses filhos para o mundo vai dar muito trabalho, até porque não vai ser tarefa exclusiva da escola comum, vai precisar do envolvimento deles, pais, que não tiveram filhos para ter esse tipo de compromisso.

O pior é que outros pais em cargos políticos estimulam essa lógica. Primeiro porque estão de olho nos votos dos pais insatisfeitos, depois porque muitos deles são, eles mesmos, os beneficiários dos sistemas de exclusão e segregação. O poder adora tutelar pessoas.

Os pais que querem criar seus filhos como seres humanos são chamados de loucos, radicais e até de xiitas.

Essa lógica perversa só muda quando a sociedade quer, só muda se os pais se mexerem para isso. Aí a escola se prepara, os professores se preparam, o mundo muda.

Descrição da imagem: foto de uma multidão numa manifestação política de defesa de direitos civis

domingo, 1 de novembro de 2009

Procrastinações públicas em comunicação para pessoas com deficiência

Me pediram para falar a respeito de políticas públicas, em especial as referentes à comunicação para pessoas com deficiência. Por isso, antes de mais nada. fui pesquisar para entender o que são, ou deveriam ser, essas tais de políticas.

Descobri alguns conceitos interessantes. Que políticas públicas se fazem através de projetos transdisciplinares, uma vez que envolvem a ciência política e também a administração.

Que elas existem para a garantia dos direitos sociais, que visam a resolução de conflitos em torno da alocação de bens e recursos públicos para atender o maior número de beneficiários possível.

Existem diferenças entre decisões políticas e políticas públicas. Nem toda decisão política chega a ser uma política pública. Decisão política é uma escolha dentre um leque de alternativas, já política pública, que engloba também a decisão política, pode ser entendida como sendo um nexo entre a teoria e a ação. Esta última está relacionada com questões de liberdade e igualdade, ao direito à satisfação das necessidades básicas, como emprego, educação, saúde, habitação, acesso à terra, meio ambiente, transporte etc.

Em tese tudo parece ser muito bonito. Exceto pelo fato que, não só na área de comunicações (mas de educação, da cultura, da saúde) as políticas públicas têm sido regidas pelos interesses da iniciativa privada e quase nunca no interesse público. Por isso prefiro chamar a minha fala de procrastinações públicas e, caso você não conheça o verbo procrastinar, ele significa a técnica sofisticada do que popularmente conhecemos como empurrar com a barriga.

O que não deixa de ser curioso, uma vez que, quando nos debruçamos sobre os aspectos puramente capitalistas desses problemas notamos que, em que pese o natural aumento de custos que essas políticas públicas podem criar para as empresas privadas, elas também trazem no seu bojo uma abertura de mercado de consumo que elas parecem não considerar que existe.

Peguemos um caso específico ligado à área das comunicações, uma vez que esse é tema desse encontro.

Em 27 de junho de 2006, através da portaria 310, o Ministério das Comunicações estabeleceu os recursos de acessibilidade para pessoas com deficiência a serem implantados pelos transmissores de radiodifusão (que, por sinal, são concessões públicas).

Os recursos que deveriam ser implantados num prazo de 2 anos seriam a audiodescrição, a janela de LIBRAS e a legenda oculta (closed caption). No caso da audiodescrição isso implicaria na transmissão de 2 horas de programação diária com o recurso (a programação integral só teria audiodescrição depois de 11 anos).

Um dia antes da entrada em vigor do serviço. O Ministério da Comunicações adiou o prazo por mais 30 dias sob alegação da Abert que não teriam tempo para implantar o recurso. Claro, como costuma acontecer nesse país, os dois anos só serviram para esperar o prazo vencer. Depois foi colocado um novo prazo de mais 90 dias.

E depois de 2 anos e 3 meses...e Ministério abriu uma nova consulta pública a respeito. Pior uma consulta pública sem recursos de acessibilidade para uma das partes interessadas no tema. Claro que com objetivos meramente protelatórios, uma vez que úma consulta pública já tinha sido para embasar a portaria 310.

Claro que esse tipo de adiamento eterno atende apenas os interesses das empresas de radiodifusão.

No Brasil, segundo dados do IBGE, existem pelo menos 24,6 milhões de pessoas com alguma deficiência, sendo que 16,6 milhões (quase 70%) têm limitações visuais, são cegos ou possuem baixa visão. Só dois estados do Brasil tem população maior que essa (SP & MG) é o equivalente de toda a população do Chile. Dos 200 países do mundo, só 1/4 deles tem população maior que essa.

Portanto, o que acontece quando as empresas de radiodifusão, negam a essa parcela da população o direito de acesso aos seus programas

1. Contrariam toda noção de direitos humanos e de direitos constitucionais (art 227 $1, II) de acesso universal de bens e serviços. O que não deixa de ser curioso quando essas mesmas empresas gritam tão alto quando são atingidas naquilo que entendem ser seus direitos.

Pior, contraria a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, recém aprovada com status contitucional. O Congresso Nacional aprovou, por meio do Decreto Legislativo no 186, de 9 de julho de 2008, conforme o procedimento do § 3º do art. 5º da Constituição, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, e o Decreto nº6.949/2009, que a promulgou.

2. Contraria todo o discurso de responsabilidade de social que arrotam nas suas programações. O que confirma a desconfiança de que, no modelo assistencialista fiscal em que vivemos, responsabilidade social só interessa quando carrega junto algum benefício fiscal.

3. Contrariam o direito democrático de acesso à informação, o que configura censura velada ou pior ainda, um modelo ideológico que pretende manter essas pessoas alienadas da sua cidadania (um modelo alías que interessa muito aqueles que exploram economicamente a tutela das pessoas com deficiência.

4. Contraria os interesses mercadológicos das próprias empresas que estão abrindo mão de um mercado de consumo imenso. Quando vemos uma empresa como a Natura colocando audiodescrição nas suas peças publicitárias, podem ter certeza que não é para ser só simpática com os cegos.

Enquanto as empresas de comunicação não perceberem o que estão perdendo ao patrocinar a exclusão, elas vão ficar se escondendo atrás de pseudo questões financeiras e tecnológicas. Cabe ao poder público efetivamente atender o interesse do que é de todos e não só de alguns.

A menos, é claro, que o poder público tenha como meta manter o apartheid em que nos encontramos hoje.

*Esse texto foi o que serviu de base para a minha palestra no Seminário Internacional Comunicação & Exclusão, promovido pelo Instituto MID e pelo SESC Vila Mariana, em Outubro de 2009

Descrição da imagem: um homem com cara sonolenta, lê na porta da Associação dos Procrastinadores Anônimos o seguinte aviso: Reunião de hoje à noite foi adiada e será remarcada.