sábado, 30 de maio de 2009

Nossa utopia diária

Novidades do dia publicada 10/05/2009 - Ano IV - Edição 1000 - Edição dos sonhos

Está é a Milésima edição das Novidades do Dia, uma edição bem diferente das 999 anteriores. As notícias publicadas hoje representam os sonhos e os anseios de todos nós, aquelas notícias que nós todos adoraríamos ler. Alguns chamam de utopia.

Nós acreditamos na utopia.

No 1o de Outubro de 2005, um grupo de amigos resolveu assumir a continuidade de um serviço prestado pela rede SACI que estava sendo descontinuado, a contragosto, pelo pessoal da Rede. Nossa primeira edição tinha 9 notícias, 6 colaboradores e foi enviada para 5 grupos. Hoje temos dezenas de notícias diariamente, 13 colaboradores fixos mais vários eventuais e o boletim é distribuído para quase 40 grupos e redes de informação.

Aqui as notícias que nós gostaríamos de ler e, nesse dia, as Novidades deixarão de ser enviadas:

1) Eliminados impostos para importação de recursos tecnológicos destinados a pessoas com deficiência - Marta Gil

Tramitou, em regime de urgência, projeto de lei que isenta a taxação de recursos tecnológicos destinados a pessoas com todos os tipos de deficiência (física, visual, auditiva, intelectual, surdocegueira e múltipla deficiência), pela Câmara dos Deputados e em seguida pelo Senado Federal. O projeto foi aprovado por expressiva maioria nas duas Casas.O referido projeto abrange todos os tipos de recursos, desde os mais simples, do ponto de vista tecnológico até os mais sofisticados, desde que não haja similar nacional.O artigo 2 contempla a simplificação do processo de comprovação da não existência de similar nacional e dos procedimentos para importação, reduzindo expressivamente o tempo entre a solicitação e a chegada do equipamento ou bem importado. O artigo 3 dispõe sobre incentivos à pesquisa, desenvolvimento e fabricação destes recursos, também conhecidos como Tecnologia Assistiva, visando fortalecer a indústria nacional e melhor atender os interesses desta significativa parcela da população brasileira, que corresponde a 14,5% do total.

Estima-se que o impacto da isenção seja expressivo, fortalecendo o desenvolvimento social e individual, com reflexos sobre a educação, trabalho, lazer, esportes, cultura das pessoas com deficiência, seus familiares e profissionais envolvidos.Os defensores do projeto esclarecem que o conceito aprovado define a Tecnologia Assistiva como uma área do conhecimento, de característica interdisciplinar, que engloba produtos, recursos, instrumentos, metodologias, estratégias, práticas, sistemas tecnológicos e serviços que objetivam promover a funcionalidade, relacionada à atividade e participação, de pessoas com deficiência, incapacidades ou mobilidade reduzida, visando sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social. Portanto, são de enorme interesse para pessoas com deficiência e também para idosos, que tendem a apresentar limitações à medida que sua longevidade aumenta.Em sua opinião, a aprovação do projeto e abertura de linhas de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) por órgãos de fomento como FINEP, CNPq e outros representam um marco na história do movimento das pessoas com deficiência.

2) Crianças e jovens com autismo já são parte das escolas regulares deste país. Valéria Llacer

Depois de anos de luta, pais de pessoas com autismo, finalmente conseguiram convencer e sensibilizar ao governo, que mais do que verbas, a inclusão de crianças e jovens com autismo em escolas regulares era uma questão de boa vontade, bom senso e competência, ou seja, que os professores finalmente desde os cursos de graduação tivessem orientação e treinamento de como receber, e ensinar a uma criança ou um jovem com autismo. Além disso, a implantação de salas de apoio nas escolas regulares, voltadas para as pessoas com autismo com grau moderado ou severo, o uso de comunicação alternativa e aumentativa, além das TICs, e a contratação de um auxiliar pedagógico para ajudar ao professor titular, conseguiu romper com preconceitos e medos sobre a educação da pessoa com autismo nas escolas regulares.

3) Educação e saúde no tratamento dos transtornos de aprendizagem. Eugenia Maria

O que parecia ser mais difícil do que a cura do câncer não é mais problema, depois do descobrimento de um novo tipo de tratamento para os distúrbios de aprendizagem de forma simples e segura. As pesquisas mais recentes apontam para um processo de orientação à base de informações para pais e professores que, bem aplicadas pelos dois, fornecem aos pacientes um tipo de conhecimento automático capaz de reverter as mais diversas síndromes e transtornos.O mais interessante é que esse tratamento educacional, além de muito simples, apresenta resultados altamente satisfatórios em pouquíssimo tempo, pois basta o cruzamento das primeiras informações para iniciar um processo de reversão continuada, até a cura total.“É como se fosse uma corrente psicológica muito ágil, revertendo os sintomas rapidamente”, explica o professor e neuropsiquiatra Osvaldo Calisto Ribeiro, do Centro de Educação e Tratamento Neurológico da Universidade de Pedreiras, um dos responsáveis pelas pesquisas que já estão sendo testadas em dezenas de crianças, jovens e até adultos em várias regiões do país, sempre com resultados positivos.

4) MEC extingue pós em Educação Inclusiva - Lúcio Carvalho

O Ministério da Educação, através da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, comunica a extinção dos cursos de pós-graduação destinados ao estudo da educação inclusiva nos estabelecimentos de ensino superior brasileiros. A razão, apontada em nota extra-oficial, é de que a sociedade brasileira tem a compreensão de que a educação, para assim ser denominada, necessita assistir integralmente a todo o universo de alunos e que, desta forma, resulta desnecessária qualquer abordagem que segmente o gênero humano. A educação, como um direito inalienável a que todos tem garantido o direito de acesso, pressupõe a inclusão de todos. Assim, os estudantes e pesquisadores que ainda tiverem interesse em investigar a educação inclusiva, deverão dirigir seu interesse à area de concentração denominada por História da Educação.

5) Fim das ações afirmativas para a inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho. - Rita Mendonça

Passados 5 anos sem que nenhum auto de infração lavrado pelos Auditores Fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego apontem o art. 93 da Lei n.º 8.213/91 em sua capitulação, o Governo Federal comemora a data com solenidade em que revoga portarias ministerias que tratam do assunto. A data foi apontada como o marco da plena conscientização do empresariado brasileiro, no que se refere à inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho. Afinal, são 60 meses sem que os órgãos fiscalizadores constatem nenhuma empresa brasileira com mais de cem empregados desviada dos percentuais previsto na Lei de Cotas. O fato se deve não somente a ação dos agentes fiscalizadores, mas às décadas de política de ação afirmativa, e as medidas de inclusão social de pessoas com deficiência no ensino público regular. "A medida - de promover uma educação para todos - tanto contribuiu para a qualificação das pessoas com deficiência, quanto para a formação cidadã das pessoas sem deficiência. O empresário consciente, que hoje respeita as diferenças, valorizando as potencialidades, foi a criança de outrora, que em sua formação teve a oportunidade de conviver com a diversidade e aprendeu a respeitá-la" - disse o Ministro. Todas as portarias do MTe, que tratavam da fiscalização do cumprimento da Lei de Cotas, por regularem matéria completamente sem uso, foram revogadas esta manhã, pelo Ministro do Trabalho. Nesta mesma data, foi dada entrada em projeto de lei que exclui o art. 93, do Plano de Benefícios da Previdências Social, tendo em vista que as medidas de ação afirmativas são transitória e, no caso do Brasil, dela não mais se necessita.

6) Fórum Permanente de Educação Inclusiva encerra suas atividades - Fábio Adiron

A Comissão Executiva do FoPEI - Fórum Permanente de Educação Inclusiva, organização fundada em 1997, comunicou hoje oficialmente a extinção do mesmo. Segundo membros da executiva ouvidos pela reportagem, as reuniões do Fórum vinham se esvaziando já há alguns meses pois os participantes não tinham mais interesse em discussões hipotéticas. Á medida que eram cada vez menos os segmentos da sociedade excluídos da educação, o fórum ficou sem pauta e sem palestrantes. Mesmo os novos participantes não conseguiam entender exatamente o que significava o conceito de inclusão numa sociedade sem exclusões como a nossa. Algumas das fundadoras da entidade sugeriram manter o grupo como um espaço de discussão da história remota da educação brasileira, mas foram convencidas que seria melhor formar uma confraria de bebedores de chopp com batata frita.

7) Povo brasileiro festeja o fim as injustiças e a nova ordem social. - Cláudia Grabois

Um dia sonhamos com uma escola para todas as crianças e com um país para todas as pessoas. Na verdade sonhamos muito mais do que isso: sonhamos com um mundo sem fome, sem violência , sem abismos sociais, sem preconceito e sem discriminação para todas as pessoas; e é com alegria que hoje posso afirmar que juntos conseguimos. É a vitória de uma grande rede "milenar" e tivemos a honra de fazer parte dessa corrente que perpassou muitas gerações.Nesta tarde, vários países, incluindo o Brasil, publicaram uma carta conjunta, onde afirmavam o que já sabíamos. Que não há mais fome no mundo, que todas as pessoas têm uma vida digna e que todas as declarações que garantem direitos humanos, começando pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, perderam hoje a sua função. Afirmaram que as Convenções e Declarações passam a integrar o museu da História, pois perderam a utilidade.

O Brasil e o povo brasileiro comemoram hoje o fim da fragmentação, de todas as barreiras sociais e fronteiras, e brinda a unidade. Foram muitas gerações que lutaram por uma sociedade justa e que trabalharam bravamente para que festejássemos este dia. Todas as crianças, com e sem deficiência, e de todos os lugares do Brasil, origens e orientação frequentam a Escola que um dia almejamos. Inclusão Total, com acesso à Educação de qualidade. Todas as barreiras sociais foram rompidas, o tempo da invisibilidade produzida pela exclusão foi deixado para trás e vivemos em uma nova ordem social.Viva a sociedade inclusiva que juntos ajudamos a construir; e salve todos aqueles que lutaram e deram as suas vidas para que este dia se tornasse realidade.

8) Brasília anuncia nova política nacional para pessoas com transtornos globais do desenvolvimento - Vivian W Missaglia

O Presidente da República e o Ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República anunciaram oficialmente hoje a implantação de políticas públicas para pessoas com transtornos globais do desenvolvimento.Mundialmente, os transtornos globais do desenvolvimento são reconhecidos como uma questão de saúde pública. Sendo assim, campanhas nacionais de informação, cursos de capacitação e múltiplas iniciativas serão desenvolvidas em todas as áreas, especialmente da Saúde, da Educação e da Assistência Social para prestar atendimento digno a essa parcela da população brasileira, que permaneceu durante anos sem seus direitos de cidadania garantidos.O Governo Federal investirá não somente em recursos humanos, mas também em recursos materiais para promover e efetivar a inclusão desses cidadãos e cidadãs brasileiras. A capital brasileira será a primeira do país a implementar atendimento e tratamento especializado para pessoas com transtornos globais do desenvolvimento que, com a Lei 108/2009, passam a ser considerados em suas particularidades na perspectiva da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU ratificada.

9 ) Brasil é exemplo no cumprimento da Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência - Ana Cláudia Correa

Em 1º de agosto de 2008 o Congresso Nacional ratificou com quórum qualificado a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Isso quer dizer que esse tratado tem força de emenda à Constituição Federal, que é o conjunto de normas que regem o ordenamento jurídico de um país. Mas de que nos adiantaria ter mais uma emenda constitucional se ela não seria cumprida como tantas outras leis que existem no nosso país? Pois bem, nesse caso, felizmente , o Brasil é exemplo no cenário mundial e entrou para a história como o primeiro país a cumprir integralmente a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Com a incansável fiscalização dos ativistas do segmento e das próprias pessoas com deficiência somadas ao excelente trabalho que o Judiciário brasileiro tem prestado ao assegurar o cumprimento dos 50 artigos presentes no texto, pode-se afirmar que, hoje, as pessoas com deficiência no Brasill estão desfrutando de forma plena e equitativa todos os direitos humanos e liberdades fundamentais que são inerentes ao ser humano. Políticas Públicas foram criadas visando atender as necessidades especificas das pessoas com deficiência e inumeros de centros de capacitação de profissionas e equipes que trabalham com pessoas com deficiência foram inaugurados visando a melhora na assistência e na qualidade dos serviços assegurados na Lei. Uma recente pesquisa divulgada pelo MEC informa que 100% das crianças com deficiência já se encontram matriculadas em escolas regulares e que os resultados são extremamente positivos tendo em vista o apoio técnico e financeiro que tem sido dado aos sistemas públicos de ensino para a oferta e garantia de atendimento educacional especializado, complementar à escolarização. Além disso, o Brasil adotou medidas apropriadas para assegurar o acesso das pessoas com deficiência ao meio físico, ao transporte, a informação e comunicação, serviços e instalações públicas a fim de garantir a sua autonomia e participação em todos os segmentos da sociedade. Toda essa mudança de realidade, resultado de um árdua luta do movimento pela inclusão ampla geral e irrestrita, acabou fomentando na sociedade brasileira o repeito pelos direitos e pela dignidade das pessoas com deficiência, eliminando os estereótipos e preconceitos, e dando chance desses individuos mostrarem sua capacidade e contribuirem em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida. Hoje, temos o orgulho de dizer que o nosso Brasil é exemplo para o mundo e as medidas aqui adotadas merecem ser seguidas por tod@s.

Colaboradores : Ana Cláudia Correa (RJ), Cláudia Grabois (RJ), Eugênia Maria (SP), Fábio Adiron (SP), Luciane Maria Molina Barbosa (SP), Lúcio Carvalho (RS), Marta Gil (SP), Patrícia Almeida (NY), Paulo Romeu Filho (SP), Rita Mendonça (AL),Sandra Tavares (CE), Valéria Llacer (RJ) e Vivian W Missaglia (SP).

Se você não está em nenhuma lista que recebe as Novidades do Dia e outras notícias sobre Inclusão e Deficiência , inscreva-se através do site : http://br.groups.yahoo.com/group/novidadesdodia/

Descrição da imagem : Estátua de Thomas Morus, autor do livro Utopia

quarta-feira, 27 de maio de 2009

A imperfeição de todos nós

Minhas conversas virtuais com o MAQ sempre são ricas em reflexões e significados. Aprendemos muito um com o outro. Dentre os meus muitos interlocutores, credito a ele algumas mudanças de idéias que tive durante a minha carreira no movimento em defesa dos direitos das pessoas com deficiência (tudo bem, tem algumas coisas que nem ele me convenceu do contrário).

O papo mais recente surgiu com a publicação de "Em compensação..." texto onde afirmo que o uso dos termos compensação e superação são formas sutis de rejeição da diversidade. O papo enveredou pelo video do Breno Viola e da Virginia Vendramini no programa Assim Vivemos.

A questão é se por um lado ele acha esquisito dizer que tal pessoa é uma grande artista com deficiência, pois se ela é uma grande artista a deficiência não tem papel algum em sua inclusão, mas sua arte sim, por outro lado, não há como negar, se a pessoa do artista tem uma deficiência, que aquilo a deixa igual na diferença e que a diferença existe. A diferença existe e identifica as pessoas que a tem. Mas, onde está o limite entre a identidade da pessoa, do artista, da deficiência e de outras características que a pessoa tenha?

O fato de uma pessoa ser uma artista com deficiência valoriza ou não a sua arte?

Eu me coloco outra pergunta: a tapeçaria da Virgínia é boa porque tem valor artístico e estético ou porque ela é cega ? Se for por valor artístico, tanto faz o fato dela ser cega ou não que os tapetes são bons. Se for pelo fato dela ser cega, então é pura piedade. O fato do tapete ser bom e ela ser cega acaba sendo uma coisa surpreendente para as pessoas que não acreditam que as pessoas com deficiência são capazes de fazer as mesmas coisas (ou seja, para o mundo, essas pessoas são quase normais...). Isso acaba sendo um reforço do conceito de superação. Apesar dela ser cega consegue fazer isso ou aquilo.

Isso acaba sendo decorrente dos mitos a respeito dos limites das pessoas com deficiência. Para a população, determinadas deficiências seriam impeditivas de determinadas ações. E, claro, surpreendem-se quando descobrem que não é. Mas ela continua sendo uma pessoa cega. Isso não vai mudar.

Eu não gosto muito desse conceito de identidade associado a essa ou aquela deficiência (ou a essa ou aquela etnia, nacionalidade, religião, orientação sexual ou qualquer adjetivo que segregue um grupo da população dos demais). Acho que isso só serve para estereotipar as pessoas que tem alguma característica que a diferencie da média da população.

Para mim o MAQ é cego, mas é um cego diferente da Virgínia, com habilidades e competências que são exclusivas da sua individualidade e não de uma suposta identidade dos cegos. Eu não sou cego e não tenho a menor competência para bordar tapetes. Isso me diferencia mais da Virginia do que o fato dela enxergar ou não.

Acredito que a inclusão vai se dar quando as pessoas forem valorizadas pelo que elas são, independentemente de terem ou não deficiência, o que não nega a deficiência, mas se concentra no potencial da pessoa e não no seu déficit.

No mesmo texto, o Gil Pena, outra pessoa que faz parte do conselho da minha consciência crítica, afirma que todo aprendizado cultural se faz no sentido de compensar as nossas incapacidades, contornando as limitações que todos nós temos.

Concordando e expandindo essa verdade, se todos temos, em algum momento de compensar alguma incapacidade para provocar o nosso próprio desenvolvimento, então essa ação é comum a todas as pessoas e não somente às pessoas com deficiência (mas, cuidado, não caia na tentação de dizer que somos todos "deficientes", que é apenas outra falácia para desvalorizar a diversidade).

Assim sendo, a compensação ou a superação passam a ser inerentes à unica identidade que nos une, que é a de sermos humanos.

Descrição da imagem : uma xícara em arte wabi-sabi. Wabi-sabi (?) representa a uma visão de mundo e estética da cultura japonesa centrada na aceitação da transitoriedade e da imperfeição das coisas. É chamada de " a arte do imperfeito, incompleto, não permanente"

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Em compensação...

Existem vários termos emblemáticos que fazem referência às pessoas com deficiência. Alguns são explicitamente ofensivos e preconceituosos, muitos são anacrônicos e desatualizados. Geralmente, os primeiros só são usados por pessoas que tem a clara intenção de ofender, os últimos por aqueles que pararam no tempo ou, por falta de contato efetivo com pessoas com deficiência, nunca aprenderam.

Apesar de precisarmos lidar com essas duas situações, algumas vezes de forma contundente, outras com modelos educativos, não é essa terminologia que mais dá trabalho ao movimento em defesa das pessoas com deficiência, mas uma terceira categoria que é a dos termos aparentemente corretos que trazem embutidos no seu significado uma série de preconceitos e mitos.
O maior agravante desse vocabulário é o fato de muitas das próprias pessoas com deficiência não perceberem como elas mesmas se diminuem ao usá-lo.

O MAQ me chama a atenção de um deles : a tal da "compensação". A Tchela me lembrou de outro: "superação".

Compensar significa equilibrar um efeito com outro; neutralizar a perda com o ganho, o mal com o bem: compensar os defeitos pelas qualidades.

É muito típico ouvirmos que os cegos ouvem muito bem. Que as pessoas com deficiência intelctual tem uma sensibilidade maior que o resto da população. Que as pessoas surdas tem uma maior percepção dos contextos...

A idéia de que as pessoas com determinada deficiência compensam esse fato com alguma outra qualidade já parte do princípio que a deficiência é um defeito que precisa de reparação. Desconsidera que a deficiência é parte essencial daquela pessoa e, como tal, deveria ser aceita.

Mas não é.

No fundo, o uso desse termo só indica que quem o usa não entende a diversidade como valor, mas como algo que precisa ser neutralizada. Elas não aceitam a deficiência, tem dificuldades em lidar com seus próprios preconceitos a respeito do tema.

Já superar é fazer desaparecer, remover, resolver. Se eu acho que uma pessoa com deficiência precisa se superar estou dizendo que, de alguma forma, ela precisa fazer com que o seu "defeito" não seja perceptível (porque, nesse olhar, a deficiência é algo que ofende e incomoda).

De novo caímos no fato que a diferença não é aceita. Ela precisa ser removida até o ponto que não choque os olhares.

Além disso, ambos os termos também são muito usados como uma demonstração de piedade: "coitadinho, ele é cego, mas em compensação..."

Exigir que as pessoas compensem ou superem suas deficiências nada mais é do que declarar que, caso não o façam, continuarão a ser pessoas de categoria inferior.

Pode parecer uma simpática forma de estímulo mas é só uma forma hipócrita de rejeição.

Descrição de imagem : gravura retratando Tirésias, personagem da mitologia grega que, sendo cego, enxergava o futuro.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Cotas e moedinhas

Algumas vezes me pego pensando para onde caminha o movimento em defesa das pessoas com deficiência. E não chego a conclusão nenhuma.

No mesmo momento em que avançamos numa série de aspectos, a ponto de termos participado ativamente na construção da convenção ONU (e como parte envolvida nessa processo, dentro das reuniões preparatórias no Brasil, confesso que poucas vezes vi um debate de tão alto nível) também somos bombardeados pelas notícias mais anacronicamente surpreendentes.

A moda atual é a de criar cotas para pessoas com deficiência.

Ainda que eu acredite na política de ações afirmativas, não consigo entender porque devem existir cotas em situações em que o serviço deveria ser universalizado. Creche não deveria ser direito de todos? Acesso aos mais altos níveis da educação não é um direito constitucional?

A criação de cotas nessas situações significa que vai ter gente que vai ficar de fora, o que não deixa de ser um absurdo.

Mas não é só nesse nível rasteiro que manifesta o pouco respeito às pessoas com deficiência.

O prêmio de proposta mais insana é a de um deputado federal de Santa Catarina que apresentou um projeto de lei na Câmara Federal propondo que as moedinhas lançadas nos monumentos públicos fossem recolhidas e usadas no atendimento às pessoas com “disfunção mental” (sic) numa clara sinalização de menosprezo total à população brasileira com deficiência intelectual.

É uma demonstração de desconhecimento da situação das pessoas com deficiência, da terminologia, dos movimentos pela autonomia e inclusão. Para dizer o mínimo. Uma proposta demagógica, assistencialista e caritativa no pior sentido dos termos.

Difícil mesmo é pensar que esse é um dos sujeitos que votou a ratificação da Convenção sobre os direitos das pessoas com Deficiência. Mais grave, ele não está sozinho. Quase todos os projetos que tramitam no Congresso tem o mesmo caráter comezinho de caça votos (isenções fiscais, uso de dinheiro público para a manutenção de entidades privadas, concessão de gratuidades). E todos se acham cheios daquelas boas intenções que locupletam o inferno.

Já ouvi várias manifestações a respeito. Desde as que não posso reproduzir aqui sobre o destino das moedinhas, até sugestões de incluir também no projeto as moedas dos bueiros, de contratar pessoas com deficiência para catar as moedas ou a distribuição de cofrinhos com a cara do parlamentar estampada.

O problema maior é que existe muita gente que quer mesmo é receber esmola. Se as pessoas estivem mais preocupadas com a sua dignidade, talvez os projetos de lei fossem outros.

Descrição da imagem : dois pobres pedem esmolas na rua, um branco e um negro. Um homem de terno deposita uma moeda no chapéu do branco (que já está cheio) enquanto o chapéu do negro segue vazio.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Tirem as nádegas da cadeira

Entrevistador: Marco Antonio de Queiroz - MAQ.

1 - Porque inclusão?

Porque as exclusões são muitas. Vivemos ainda numa sociedade compartimentada e, apesar dos discursos bonitos a respeito de igualdade, percebemos que muitos (e não só as pessoas com deficiência) não tem acesso às condições mais básicas de existência. Perpetuar essas exclusões é uma forma de considerar determinadas pessoas como seres humanos de segunda ou terceira categoria, como se fossem menos humanos, com menos necessidades que os demais.

2 - Inclusão escolar, inclusão social, inclusão no trabalho, inclusão política… algum excluído conseguiria sentir-se em uma sociedade inclusiva caso sua deficiência não fosse aceita em sua própria casa?
Algumas pessoas conseguiram superar suas próprias exclusões familiares e encontrar seu espaço social mas, sem dúvida, se no espaço social que mais deveria dar apoio às pessoas, elas são excluídas, a vida fica muito mais difícil.

O que não significa que, apesar de amados por suas famílias, muitos não sejam excluídos dentro dos seus próprios lares sob relações pessoais que parecem aceitáveis, mas são excludentes. Muitos pais não acreditam que seus filhos conseguirão estudar, outros os “protegem” da sociedade evitando qualquer contato com ela e, não poucos, lidam com a deficiência como se essa precisasse de pena e comiseração.

3 - Alguns políticos tradicionais de esquerda associam a luta das pessoas com deficiência à uma “luta de classes”, na verdade, uma “luta de segmentos da sociedade”. Como militante da inclusão das pessoas com deficiência, do segmento menos visível socialmente, como percebe sua briga pessoal a favor das pessoas com deficiência intelectual?

Acho que o discurso ideológico da defesa dos direitos das pessoas com deficiência está muito próximo da defesa dos direitos humanos. Circunstancialmente esse é um discurso que acabou mais associado à esquerda, que se apropriou do mesmo. Direitos humanos não são nem de esquerda nem de direita.

Por outro lado, considerando que o atual discurso da direita liberal é o da competição e da lei do mais forte ou mais hábil, esse acaba considerando que as pessoas com deficiência são um estorvo para suas metas. Diga-se de passagem, não só as pessoas com deficiência, mas também os pobres, os analfabetos, os negros…

4 - Já sentiu vontade, alguma vez, de largar tudo? Porque?

Largar tudo não. O que não significa que, de vez em quando, eu não deixe de lado algumas formas de militância e, quando o faço, costumo trocá-la por alguma outra que me pareça mais adequada. Existem alguns princípios dos quais eu não abro mão, o principal deles é o de lutar pela inclusão de todos de forma irrestrita, então não me alio com quem, para manter seus privilégios exclusivos, defende pseudo-inclusões de caráter limitado, ou como costumam dizer, a “inclusão responsável”, que nada mais é do que fingir que está incluindo, quando só está oferecendo migalhas.

5 - Em que se traduz acessibilidade para pessoas com deficiência intelectual?

A principal barreira que é colocada diante das pessoas com deficiência intelectual é a de atitude. As pessoas partem do princípio que pessoas com DI nunca vão aprender, ou que não podem aprender qualquer coisa. E quando alguém acredita nisso, deixa de tentar ensinar, deixa de procurar recursos pedagógicos adequados. É preciso construir as “rampas” de aprendizagem, assim como um cadeirante não vai subir uma escada, a pessoa do DI vai precisar usar outros caminhos cognitivos para construir a aprendizagem.

Só que uma coisa legal disso tudo é o seguinte: as rampas não são boas só para cadeirantes, mas para idosos, obesos, mães com carrinhos de bebê….Da mesma forma, os caminhos pedagógicos não homogêneos, também são bons para todas as pessoas.

6 - Na hora de “brigar feio” com seu filho, já deixou de fazê-lo pensando em sua deficiência?

Eu só poderia poupar meu filho de uma bronca de pai se o motivo da bronca fosse decorrente da sua deficiência. Em 10 anos (a idade do Samuel), não houve nada que ele fizesse que eu associasse ao fato de ter síndrome de Down. Malcriação e desobediência não estão alojadas no cromossomo 21, risos.

7 - Acredita no futuro menos incerto, mais visível e justo para as pessoas com deficiência
intelectual?

Eu acredito num futuro muito diferente do que o presente. Mas não acredito em previsibilidade, até porque não acho que o futuro será previsível e confortável para nenhum de nós, o mundo não está melhorando. Mas acredito num futuro em que as pessoas com deficiência intelectual sejam, no mínimo, considerados como seres humanos e não ET´s vindos de Plutão. 8 - O que mais dói nessa luta, a dimensão dos limites da deficiência dessas pessoas, entre as quais seu filho, ou a relação da sociedade com elas?

O que mais dói não é nem uma coisa, nem outra. O que mais dói é assistir muitos pais de crianças com deficiência não prepará-las para a vida real. Ou porque são alheios à defesa dos direitos dos seus próprios filhos, ou porque acreditam nesse modelo de exclusão que nos é apresentado. Optam pela comodidade de encerrar as crianças em instituições que cuidam delas das 7 às 18, de forma que eles mesmos não tenham que se preocupar com isso. É verdade que isso não está acontecendo só com as pessoas com deficiência mas, para essas, isso representa a negação de qualquer chance de autonomia.

9 - Por fim, poderia nos dizer, por favor, algo a respeito do assunto como mensagem para todos?

Outro dia estive conversando com os professores de uma escola situada num bairro muito pobre de São Paulo. E constatei mais uma vez que inclusão não é coisa de classes favorecidas. Depende da família, depende da escola, depende da comunidade. Dá trabalho para todo mundo, mas tem suas recompensas.

Minha mensagem é muito simples: tirem as nádegas da cadeira, não esperem que as benesses caiam do céu mas lutem por direitos de todos, não privilégios de alguns.


Publicado originalmente no Blog do Bengala Legal, onde você pode ler vários comentários a respeito

Descrição da imagem : um rapaz que tenta se levantar, mas está com as nádegas presas em um sofá