sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Síndrome de apud

Alguns autores não costumam ser fáceis de ler. Outros, apesar de não serem tão difíceis, tem o inconveniente dos seus livros, há muito, terem desaparecido das livrarias. Nosso modelo de distribuição comercial editorial não lhes dá vida muito longa nas prateleiras.

O que não quer dizer que todos os autores importantes estejam esgotados ou fora de catálogo, uma busca simples nos sites das nossas livrarias me direcionou para mais de 10 títulos originais de Paulo Freire, outros tantos de Vigotski (em várias línguas, inclusive português). Poderia ter procurado Maturana, Piaget, Morin e os resultados não seriam muito diferentes.

Isso não significa que as pessoas que dizem seguir as teorias de qualquer um deles efetivamente os tenham lido. O que chega a ser assustador.

Não poucas vezes me defrontei com pessoas, que se arvoram em doutores da sabedoria inclusiva, cujo único conhecimento de Paulo Freire são algumas citações famosas que circulam na Internet em arquivos piegas de powerpoint. Em outros casos, vigotskianos que jamais chegaram perto dos Fundamentos da Defectologia, mas conhecem o autor através da citação da citação da citação. Freud continua sendo o responsável por explicar tudo, desde que não seja necessário ler Totem e Tabu, nem a Interpretação dos sonhos.

Eu costumo me referir a essa prática como síndrome de apud, uma palavra latina usada quando se faz uma citação de segunda mão, isto é, a citação de uma citação. Em outras palavras, ela se refere à transcrição ou paráfrase de uma frase ou um trecho de que só tomamos conhecimento no livro de outro autor. Ou seja, é uma declaração de que o original não foi lido por quem o menciona.

Você lembra da brincadeira do telefone sem fio? Que conta um conto aumenta (ou diminui) muitos contos? É o que está acontecendo entre os nossos especialistas. Na educação, que eu acompanho mais de perto, a síndrome de apud é onipresente, e o que chega na ponta, onde se educam as crianças, é a versão da leitura da interpretação da análise crítica requentada por apostilas.

Os grandes nomes da educação são tão relativizados que chegam a gerar monstros como o "método piagetiano", coisa que o suiço jamais criou. Isso sem contar as escolas que alfabetizam pelo método "Emília Ferreiro" (tenho certeza que ela nunca ganhou um centavo de direito pseudo-autoral por isso).

As causas da síndrome são bastante claras. É mais cômodo ler um livro resumindo o pensamento de um autor do que entender o que ele realmente queria dizer. Ler e pensar são atividades cansativas que podem ser substituídas por manuais com tópicos simplificados. É mais fácil transformar um posicionamento filófico em receita de bolo do que entender um pensador e cotejar seus ensinamentos com a realidade.

As editoras, que não são bobas, há tempo perceberam que o mercado da teoria digerida dá muito dinheiro. Se existem 10 livros publicados de Paulo Freire, devem existir 50 transformando Paulo Freire em leitura leve. Costumam ter títulos como "Fulano de tal: uma iniciação". "Entendendo Beltrana", ou os clássicos "7 passos para entender Sicrano".

Eu não sei se a síndrome tem solução. Nossa formação de profissionais é cada vez mais utilitária e menos reflexiva. Provavelmente as próximas gerações só saberão que Freud, Vigotski ou Morin escreveram livros pois esse serão mencionados em suas biografias na wikipedia. E todo conhecimento a respeito deles se limitará a antologias de frases famosas.

Descrição da imagem: foto de Paulo Freire.

8 comentários:

Arimar disse...

Hoje realmente você acelerou minha indignação. Junto com os apud dos livros,vem os apud dos cursos.
Encontamos "Especialistas" a cada esquina, principalmente na área de Educação Inclusiva e Dificuldades de Aprendizagem. Vemos pessoas fazendo mímica e dizendo que é Libras.
Creio que vivemos cercados de pessoas apudianas, com vasto repertórios de citações e certificados de cursos apudianos.
Beijos revoltados,não apudianos.
Arimar

O Tempo Passa disse...

Teu pessimismo é realista e tem razão de ser. E não vejo solução. Parece ser o rumo inexorável da nossa falida civilização.

Lúcia disse...

Muito legal!
Isso sem contar o apud de i et al.i com mais de 5 autores.
É também, atenção aos orientadores.
Abraços fraternos

Maíra disse...

Olá Fábio,

tudo bem?

Escrevo para pedir ajuda na divulgação de um curso que darei a partir de março no MAM. É um curso de Fotografia para Surdos. Mais informações você pode acessar pelo meu blog: http://wp.me/pstXk-6H ou escrevendo para mim (foto@mairasoares.com)

Obrigada,

Maíra

Elizabet Dias de Sá disse...

Fábio, esta é uma constatação irrefutável. Gosto muito de suas críticas afiadas e, muitas vezes, identifico-me com elas.
Elizabet

Unknown disse...

Vejo muito o Paulo Coelho fazer isto com a Bíblia. Li alguns livros dele e no final eu estava lendo a mesma coisa. E li pq ficavam dizendo q eu tinha medo de ler e ficar fanática, largar minha religião e tudo mais. Nem se ele fosse realmente um bruxo!!!

Priscila Felix disse...

Concordo!!
Parabéns pela postagem!

Priscila

Marina disse...

Ótima análise, como sempre direto ao ponto!
Também concordo com teu texto. (E não é por mentalidade de rebanho!)