sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Filhos imperfeitos

Conta uma velha história que uma mulher todos os domingos ia a uma igreja diferente para ver como era. Seu objetivo era o de encontrar uma que ela julgasse perfeita. Conheceu centenas de igrejas de diferentes crenças e denominações e sempre achava algum defeito em cada uma delas.

Um dia ela visitou uma igreja com a qual ficou encantada. Na saída da cerimônia religiosa foi conversar com o ministro para dizer que, finalmente, ela encontrara a igreja perfeita e, por isso, gostaria de ser tornar membro da mesma. O ministro olhou para a mulher e respondeu que ela não poderia ser membro de uma igreja perfeita, porque ela não era perfeita.

Essa semana, durante uma reunião de pais na escola dos meus filhos, após algumas discussões sobre o comportamento de algumas crianças, uma mãe pediu a palavra e disse que as crianças deveriam se afastar dos colegas inconvenientes e só andar com aqueles que fossem perfeitos.

Para meu azar, ou sorte dessa mãe, não era eu que estava na reunião e sim minha esposa, que é uma pessoa educada e não costuma pular na jugular como eu faço. Eu poderia até não me sentir ofendido, uma vez que meus filhos não estão enquadrados entre aqueles que têm problemas de comportamento, mas que diabos essa mulher quer dizer com "perfeitos"?

Perfeição (do latim perfectione) caracteriza um ser ideal que reúne todas as qualidades e não tem nenhum defeito. Designa uma circunstância que não possa ser melhorada ainda mais e mais.
Será que alguma criança daquela escola consegue representar essa definição? Será que a filha daquela mulher só reúne qualidades? Será que ela mesma é uma pessoa que não tenha nada para ser melhorado?

O que seria uma criança de comportamento perfeito? (ou um ser humano de comportamento perfeito?). Eu me julgo um sujeito bastante razoável, mas sei que tenho uma coleção de defeitos, inclusive de comportamento, vou prestar bem atenção para ver quem é a menina e ficar o mais distante possível dela, antes que a mãe mande seus acólitos me escorraçar da sua presença.

Na verdade, eu lamento muito pela menina que vai crescer numa família que acredita que existam seres humanos de categorias diferentes, de valor diferente. Provavelmente vai acabar sendo tão arrogante e indelicada quanto a mãe.

A meus filhos recomendo que sempre andem juntos com outras crianças que também sejam imperfeitas, assim aprenderão a se virar no mundo real e, ao mesmo tempo, desenvolver a humildade de saberem que eles mesmos não são perfeitos.

Espero não perder a próxima reunião de pais. Vou sugerir que essa mãe parta em busca da escola perfeita. Só para ter o prazer de saber que, quando encontrar, sua filha será recusada.

Descrição da imagem: gravura Homem de Vitrúvio de Leonardo Da Vinci, que pretende retratar o corpo do homem perfeito

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Inclusão queimada

Dois fatos me chamaram a atenção na semana que passou. O primeiro foi relatado pela Rosangela Gera, contando que a Laurinha (sua filha que é cega) foi excluída de um jogo de queimada durante a aula de educação física na escola. O outro aconteceu aqui em casa, quando perguntei à minha filha o que tinham feito na educação física, e ela, com uma cara de desgosto, respondeu: teve queimada.

A Laurinha não pode participar do jogo de queimada, pois não vê quem detém ou onde está a bola. Minha filha não aguenta mais jogar queimada a cada aula de educação física e faz o possível para ser eliminada do jogo o mais rapidamente possível. O que não deixa de ser uma forma de auto exclusão.

Não sei exatamente o que se aprende nas faculdades de educação física desse país, mas imagino que, ao contrário do que acontece nas escolas, não deve ser somente as regras do jogo de queimada.Até entendo que é uma brincadeira que facilita a vida dos professores, não é necessária uma quadra, basta um terreno plano e uma bola. Também entendo que é um jogo que estimula a rapidez de movimento, a destreza, domínio e cooperação.

Mas será que os professores não percebem que não é um jogo adequado para todo mundo? (e nem estou me referindo somente às crianças com deficiência). Será que não reparam que as crianças se entendiam com o jogo depois de anos fazendo a mesma coisa? Ah sim... reparo que existe criatividade nesse campo. Algumas vezes jogam queimada de 3 bolas. Muito original.

Tirando o enfado das crianças sem deficiência, o que fazer então com aquelas que tem deficiência?

A essa altura do campeonato (para usar um termo esportivo), não é possível que os profesores de educação física nunca tenham ouvido falar em inclusão. Também não deixa de ser verdade que, assim comos muitos outros educadores, ainda estão arraigados a práticas pseudo educativas cheias de preconceitos e focadas nas incapacidades das crianças (modelo deficitário).

Partem do princípio que as pessoas com deficiência são seres subnormais portanto deveriam ser encaminhadas para classes especiais, um tipo de segunda (ou será terceira) divisão da educação. Para que esse modelo caritativo não soe tão feio usam nomes como jogos especiais, paradesporto. Estão apenas dizendo que a criança não cabe no mesmo espaço das demais que podem ser atletas competitivos.

Esquecem que educação física é, antes de mais nada, educação. "As necessidades básicas das pessoas com deficiência são o reconhecimento e o direito de serem atendidas adequadamente. Eles têm os mesmos direitos que o resto das crianças: manipular, conhecer, experimentar, brincar, relacionar-se, sentir, emocionar-se, desfrutar, rir...viver. Não estamos falando de caridade: estamos falando de direitos de pessoas".*

Claro que as atividades esportivas precisam ter algum objetivo além de escapar das boladas do adversário. Da mesma forma que um objetivo em educação física não é aquele que só é alcançado no jogo final de uma competição. Aliás, nem acredito que a educação física se limite a jogos competitivos, que seja apenas vencer quem está do outro lado. Por que é preciso existirem vencedores e perdedores? Será que não existem atividades físicas que desenvolvam um modelo cooperativo? Será que nenhum professor de educação física nunca pensou nisso?

Para isso é preciso olhar o mundo com outros olhos, não basta aplicar fórmulas prontas ou dividir os times para o jogo de queimada. É preciso ver todas as crianças como detentoras de direitos, inclusive o de participar da educação física. É preciso fazer com que a educação seja prazeirosa.

Nesse o momento, não existirão mais exclusões, nem das pessoas com deficiência, nem das que não tem deficiência. E a educação física será, de fato, educação de qualidade para todos.

*Melero, Miguel Lopez. A Educação Física e as Pessoas com Deficiência: Outro Modo de Culturização Para a Melhora da Qualidade de Vida

Descrição da imagem: desenho de crianças jogando queimada, um jogo onde uns tentam acertar uma bola nos demais.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Síndrome de apud

Alguns autores não costumam ser fáceis de ler. Outros, apesar de não serem tão difíceis, tem o inconveniente dos seus livros, há muito, terem desaparecido das livrarias. Nosso modelo de distribuição comercial editorial não lhes dá vida muito longa nas prateleiras.

O que não quer dizer que todos os autores importantes estejam esgotados ou fora de catálogo, uma busca simples nos sites das nossas livrarias me direcionou para mais de 10 títulos originais de Paulo Freire, outros tantos de Vigotski (em várias línguas, inclusive português). Poderia ter procurado Maturana, Piaget, Morin e os resultados não seriam muito diferentes.

Isso não significa que as pessoas que dizem seguir as teorias de qualquer um deles efetivamente os tenham lido. O que chega a ser assustador.

Não poucas vezes me defrontei com pessoas, que se arvoram em doutores da sabedoria inclusiva, cujo único conhecimento de Paulo Freire são algumas citações famosas que circulam na Internet em arquivos piegas de powerpoint. Em outros casos, vigotskianos que jamais chegaram perto dos Fundamentos da Defectologia, mas conhecem o autor através da citação da citação da citação. Freud continua sendo o responsável por explicar tudo, desde que não seja necessário ler Totem e Tabu, nem a Interpretação dos sonhos.

Eu costumo me referir a essa prática como síndrome de apud, uma palavra latina usada quando se faz uma citação de segunda mão, isto é, a citação de uma citação. Em outras palavras, ela se refere à transcrição ou paráfrase de uma frase ou um trecho de que só tomamos conhecimento no livro de outro autor. Ou seja, é uma declaração de que o original não foi lido por quem o menciona.

Você lembra da brincadeira do telefone sem fio? Que conta um conto aumenta (ou diminui) muitos contos? É o que está acontecendo entre os nossos especialistas. Na educação, que eu acompanho mais de perto, a síndrome de apud é onipresente, e o que chega na ponta, onde se educam as crianças, é a versão da leitura da interpretação da análise crítica requentada por apostilas.

Os grandes nomes da educação são tão relativizados que chegam a gerar monstros como o "método piagetiano", coisa que o suiço jamais criou. Isso sem contar as escolas que alfabetizam pelo método "Emília Ferreiro" (tenho certeza que ela nunca ganhou um centavo de direito pseudo-autoral por isso).

As causas da síndrome são bastante claras. É mais cômodo ler um livro resumindo o pensamento de um autor do que entender o que ele realmente queria dizer. Ler e pensar são atividades cansativas que podem ser substituídas por manuais com tópicos simplificados. É mais fácil transformar um posicionamento filófico em receita de bolo do que entender um pensador e cotejar seus ensinamentos com a realidade.

As editoras, que não são bobas, há tempo perceberam que o mercado da teoria digerida dá muito dinheiro. Se existem 10 livros publicados de Paulo Freire, devem existir 50 transformando Paulo Freire em leitura leve. Costumam ter títulos como "Fulano de tal: uma iniciação". "Entendendo Beltrana", ou os clássicos "7 passos para entender Sicrano".

Eu não sei se a síndrome tem solução. Nossa formação de profissionais é cada vez mais utilitária e menos reflexiva. Provavelmente as próximas gerações só saberão que Freud, Vigotski ou Morin escreveram livros pois esse serão mencionados em suas biografias na wikipedia. E todo conhecimento a respeito deles se limitará a antologias de frases famosas.

Descrição da imagem: foto de Paulo Freire.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Os meus desiguais

Mais uma vez, durante essa semana, fui confrontado com a tese de que as pessoas precisam conviver com os seus iguais para desenvolver a sua identidade.

Eu não entendo nada de psicologia e de psicanálise. Também não entendo porque esse tema de identificação com os iguais só surge quando se refere a pessoas com deficiência ou com aquelas que são consideradas desviantes da normalidade.

Nunca ouço que os gordos barbados como eu precisam formar um grupo de encontros para que possam exercitar suas identidades. Nem que mulheres morenas de olhos verdes deveriam criar uma associação para garantir os seus direitos.
Se eu preciso ver quem eu sou um espelho não é suficiente? Por que preciso me enxergar em outro? Além do que, nem mesmo entre gêmeos, dito idênticos, existe essa "igualdade" preconizada pelos defensores de grupetes segregados.

E aí eu me pergunto: que, afinal de contas é o meu desigual?

A Marta que é mulher enquanto eu sou homem?

O MAQ ou o Paulo que não enxergam?

A Anahi que precisa de um implante para escutar? Ou será a Flávia que não anda?

Será que meu desigual é o Nathan que é negro? Será o Richard que é homossexual? O filho autista da Valéria?

Na verdade são todos e nenhum deles. Todos são meus iguais enquanto seres humanos detentores de direitos e deveres. Todos são meus desiguais enquanto seres humanos únicos e insubstituíveis.

Mesmo o ser humano mais parecido comigo ainda será meu desigual e é nesse ponto que as pessoas não conseguem compreender o que é, efetivamente, o conceito de diversidade.

Meu diferente é qualquer um e não um grupo específico vítima da exclusão. Meu diferente é você que está me lendo.

Diversidade não é defender os interesses de coletivos de gênero, de etnia, de condição física ou de orientação sexual. Ou entendemos que todos são diversos, ou admitimos que todos são iguais, não existe meio termo (ainda que muita gente acredite que "nós somos iguais e eles diferentes")

Ainda assim, muita gente vai continuar procurando criar guetos de seres supostamente iguais. Vai colocar os filhos em encontros de pessoas com as mesmas deficiências que eles tem, educando-os para acreditarem que são seres de um planeta diferente, que só podem conviver com seus espelhos fenotípicos.

Essa é a identidade que eles vão construir, a identidade que a sociedade quer que eles tenham, a identidade que os rotula e os exclui da convivência com todos os demais seres humanos.

Descrição da imagem: uma caixa de botões de roupa de diversas formas e cores