sexta-feira, 26 de março de 2010

Uma eleição "deficiente"

A chamada do noticiário para o jornal da noite cita uma matéria onde o chefe político de plantão da localidade inaugurou um novo complexo esportivo dedicado às pessoas com deficiência. A reportagem, para ilustrar a matéria mostra a quadra poliesportiva novinha e cenas de um jogo de basquetebol entre cadeirantes, seguido de um jogo de futebol de salão para pessoas com deficiência visual.

Todos elogiam o lugar e exaltam a figura do doutor fulano que tornou aquele sonho possível. Em sua entrevista, o doutor fulano ressalta a importância da inclusão social (mesmo que isso signifique isolar pessoas com deficiência em um local só para elas) e faz promessas de mais benefícios para os "coitadinhos deficientes". Candidato a deputado na eleição que se aproxima, o doutor Fulano espera ser votado maciçamente por esse público.

Em casa, Marcos, que é pessoa com deficiência visual, ouve a matéria e chama a esposa para descrever o que a TV está mostrando, pois, em nenhum momento a emissora pensou que do outro lado da telinha existem milhões de cegos assistindo ao jornal e não têm acesso às imagens, pois a tal emissora não disponibiliza áudio-descrição dos seus programas.

Em casa, Ana Maria, que é surda e vive sozinha, não tem ninguém para chamar para lhe ajudar a saber a que exatamente as imagens da TV se referem, pois a emissora também não legendou a programação, nem providenciou a oferta da janela de LIBRAS para traduzir o que estava sendo dito na matéria.

Em casa, Dagoberto, que é cadeirante, achou tudo muito bonito, mas lamentou que não vai poder usar o complexo esportivo pois esse, apesar de acessível,está localizado num bairro da cidade que não é servido por transporte público adaptado.

Em casa, Mariana, pessoa com deficiência intelectual, pediu que a mãe a levasse para jogar basquete naquela quadra e teve de ouvir como resposta que a TV informara que aquele local tinha sido cedido para uma entidade de reabilitação, a qual não atende pessoas com a deficiência de Mariana.

Nesse momento, o doutor fulano acabava de perder ou, pelo menos, deixava de ganhar, no mínimo, 4 votos.

O último censo demográfico brasileiro aponta a existência de mais de 24 milhões de pessoas com deficiência no Brasil. Se mantida a proporção (14,5%), o censo que será realizado este ano de 2010 deverá encontrar quase 30 milhões de pessoas com deficiência. O maior grupo é o das pessoas com deficiência visual, parcial ou total, seguido pelo grupo das pessoas com deficiência física ou motora.

Desse total, mais de 70% têm mais de 16 anos e, portanto, são eleitores. Cerca de 20 milhões de votos (na verdade, muito mais, se considerarmos os familiares dessas pessoas) espalhados por todo Brasil. Sonho de consumo de qualquer candidato. Deveria ser o sonho de consumo de todo marketeiro que vai cuidar da propaganda eleitoral desses candidatos.

Os políticos ainda se preocupam em fazer jogo de cena e em entregar pacotes de caridade em forma de benefícios fiscais, gratuidades ou verbas para entidades assistencialistas. Os marketeiros não têm esse poder. Mas teriam o poder de fazer a mensagem publicitária chegar a esses eleitores e isso seria muito mais simples do que parece.

Numa eleição onde os meios de comunicação eletrônicos serão cada vez mais a ferramenta para se chegar aos eleitores, a falta de preocupação com a acessibilidade comunicacional é gritante. Se você entrar no site de qualquer um dos grandes partidos políticos vai encontrar, em todos eles, programas de TV da legenda. Nenhum deles tem qualquer recurso de acessibilidade.

Nem vou entrar no mérito da falta de acessibilidade nas TV´s abertas, essas estão protegidas da obrigatoriedade da oferta de acessibilidade por manobras protelatórias do Ministério das Comunicações.

Verdade se diga, isso não é exclusividade de políticos e de marketeiros. Esta semana mesmo recebi um material de divulgação de um curso sobre inclusão.

Nem o material, nem o site da faculdade que o promovia eram acessíveis. Ao procederem assim, os promotores de tal curso pareciam dizer: "Afinal de contas, para que as pessoas com deficiência precisam de acesso a conteúdos que falem a respeito delas?"

Pior ainda é visitar algumas páginas de políticos que são, eles mesmos, pessoas com deficiência, e descobrir que em seus sites existem conteúdos sem acessibilidade.

Convém lembrar que essa preocupação dos criadores e produtores dos programas de TV, rádio e de páginas da Internet não pode se resumir às questões tecnológicas (se bem que só isso já seria um salto de qualidade enorme), mas também à linguagem e às atitudes devem ser ponto de preocupação desses profissionais.

Muitas pessoas com deficiência, historicamente, tiveram pouco ou nenhum acesso à educação formal e, em decorrência disso, nem sempre vão entender mensagens que usam expressões mais complexas. O que os marketeiros não podem esquecer é que, mesmo sem a mesma bagagem cultural, essas pessoas têm consciência política.

Claro, existe uma grande massa de manobra que se satisfaz com o fato de ganhar um passe livre para o transporte público e barganhar seu voto em troca disso, para depois descobrir que o ônibus é gratuito. E também essas pessoas, junto às demais pessoas com deficiência não conseguirão chegar ao ponto ou embarcar no transporte, pela falta de acessibilidade física.

Claro, existe uma grande massa manobrada por instituições assistencialistas que as tutelam e fazem qualquer negócio para não perder esse poder. Não poucas dessas instituições têm representantes (geralmente, não são as próprias pessoas com deficiência) nas câmaras e no senado, eleitos às custas dessa troca de favores. Tanto uns como outros continuarão presentes na próxima eleição, mas isso também está mudando.

As pessoas estão ficando mais críticas e mais preocupadas em conquistar sua autonomia. Não adianta a propaganda do governante Beltrano falar que está colocando professores auxiliares nas séries iniciais do ensino fundamental se, quando o aluno chega à escola ele descobre que isso só acontece numa escola modelo ou projeto piloto do outro lado da cidade.

Não adianta nada políticos e marketeiros tomarem todas as medidas para que suas campanhas sejam acessíveis se os locais de votação estão repletos de escadas inacessíveis, armadilhas diversas para pessoas com deficiência física, com dificuldade de locomoção, com baixa visão e cegas.

Agora, se você é profissional de marketing, ou produtor de mídia eletrônica e vai trabalhar para algum candidato nas próximas eleições, não deixe de se informar a respeito dos recursos de acessibilidade disponíveis e não se esqueça de incluí-los na sua campanha.

Descubra o que é áudio-descrição, legendagem, interpretação de Libras, existe muita informação a respeito disso na Internet. Convide pessoas com deficiência para participarem dos focus groups sobre a campanha. Entenda a terminologia e a linguagem usadas com essas pessoas.

Isso tudo não garante que todas as pessoas com deficiência votarão no seu candidato mas, pelo menos, evitará que votos sejam perdidos pelo fato de todos esses eleitores em potencial sequer haverem tido conhecimento da sua proposta, pois ela lhes estava inacessível.

Publicado originalmente na Revista Brasileira de Tradução Visual

Descrição da imagem: mão de uma pessoa cega preenchendo uma cédula eleitoral em braille.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Xiita Convidada - O efeito não terapêutico de algumas terapias.

Carla Codeço*

Fico, a cada dia que passa, mais surpresa com os efeitos nada terapêuticos que algumas terapias provocam. Crianças sem espontaneidade, sem a alegria, o senso de humor e a peraltice próprios da infância.

São crianças ensinadas em cada atendimento a se encaixar, a exibir um comportamento normal. É como se nascessem com uma “dívida” em seu desenvolvimento, sendo obrigadas a recuperar esta defasagem evidenciada pela comparação a outros indivíduos de mesma idade. Ao invés de receberem as condições necessárias para aprender são condicionadas através das simulações da vida real dentro de consultórios. A estas crianças é mostrado, desde a mais tenra idade, como devem se comportar para se encaixarem ao padrão aceitável.

As crianças normalizadas podem ser reconhecidas a distância, acabam se parecendo com aqueles andróides dos filmes de ficção científica, que parecem humanos mas têm um que de robô.

Não quero com isso dizer que não devemos propiciar as terapias necessárias para que os potenciais de nossos filhos possam ser melhor desenvolvidos, mas devemos lembrar sempre que eles têm direito a infância, ao seu tempo de ócio. Devem vivenciar a conversa em família, ao invés de apenas terem acesso a conversa simulada na seção de terapia, devem aproveitar seu tempo de ócio em casa para recortar, rabiscar, pintar, livremente, não apenas no ambiente simulado do consultório da TO e assim por diante. Devemos ter cuidado ao estender o ambiente terapêutico para dentro de nossas casas, para que não nos tornemos também profissionais padronizadores dos nossos filhos.

Ao imputarmos aos nossos filhos a obrigação de passar no funil normalizador estamos retirando-lhes a alegria e a espontaneidade infantis. Ao invés de aceitarmos as limitações que a síndrome impõe, estaremos, nós mesmos, impondo várias outras limitações emocionais que a própria síndrome não acarreta. Falo da síndrome de Down.

A partir de um determinado momento, no acompanhamento das terapias do meu filho, percebi que os profissionais e métodos me ofertavam dois caminhos a seguir: ou nos esforçaríamos para passá-lo pela forma normalizadora ou daríamos a ele a liberdade de ser como ele é e, de mãos dadas, ajudaríamos no que fosse preciso para o seu crescimento global. Optei pela última e hoje vejo meu filho feliz, espontâneo, e levado, como toda criança de sua idade que tem o privilégio de viver uma infância saudável.

*Carla Codeço, moderadora dos grupos Sindrome de Down e RJDown e mãe do Rafael e da Joana.

Descrição da imagem : cena do filme Eu, robô onde aparece uma série de robôs humanóides numa linha de produção.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Sem explicação

Uma crença, mesmo que baseada em argumentos falsos, é muito fácil de se criar. Uma pitada de sensacionalismo, outra de escândalo e, para facilitar a difusão da mentira, algo que atribua a culpa de qualquer coisa ao governo (qualquer governo, diga-se de passagem).

Se, além desses ingredientes, a mentira que se cria ajuda as pessoas a conviverem melhor consigo mesmas ela praticamente vira uma verdade inquestionável.

É o que acontece com o mito da relação entre a vacina tríplice viral (MMR) e o autismo. Em 1998 um pseudo estudo científico foi aceito e publicado por uma revista especializada chamada Lancet. Mesmo tendo sido contestado duramente por diversos especialistas a mentira se consolidou de tal forma que alguns pais chegaram mesmo a processar seus governos por terem vacinado e desenvolvido o autismo nos seus filhos.

Doze anos e dezenas de estudos científicos sérios depois, a Lancet apresentação uma retratação oficial, pedindo desculpas por ter publicado o artigo que gerou toda a controvérsia sem fundamentação científica suficiente.

O que não significa que muitos pais tenham mudado de idéia. Eles ainda preferem acreditar que a vacina é a culpada pela condição de seus filhos. Preferem acreditar numa mentira que, de alguma forma, os conforte, do que na verdade, que os devolve ao ponto de partida (o espectro autista ainda é um grande desconhecido, ninguém sabe o que ele é, nem o que provoca seu aparecimento).

A necessidade de encontrar um culpado pela deficiência faz com que muitas pessoas acreditem em qualquer coisa. Isso vale não só para o autismo mas também para a síndrome de Down (que ninguém ainda descobriu o que provoca a trissomia) e para as dezenas de categorias de deficiência intelectual para as quais sequer existe um diagnóstico efetivo.

Assim como a questão da cura, a busca pelo bode expiatório é incessante.

Geralmente são pessoas que querem se desvencilhar da culpa que eles acham que tem. Enquanto não se desvencilham desse peso que se colocaram nas costas (inutilmente, diga-se de passagem, mesmo porque, ainda que fossem tecnicamente culpados isso não deveria mudar a forma de encarar e criar seus filhos) eles deixam de aproveitar mais seus relacionamentos com os filhos.

Quando entenderem que a deficiência não muda as suas condições como pais, nem o fato dessas crianças serem filhos, talvez gastem mais tempo com cada uma delas. Certamente vão descobrir que é uma relação maravilhosa, como com qualquer outro filho.

As crianças que, então, serão alvo de mais atenção e carinho, agradecem.

Descrição da imagem: montagem fotográfica onde uma lâmpada tenta se ligar numa tomada, mas não consegue por os pinos do plug são diferentes dos da tomada

Aviso: os links desse artigo são matéria em Inglês

sexta-feira, 12 de março de 2010

Não existe educação inclusiva

Questionado sobre a existência de algum bom curso de especialização em educação inclusiva fui obrigado a responder ao meu interlocutor que não conhecia nenhum, mesmo porque eu não acreditava na existência de nenhum curso sobre esse assunto.

Diante da surpresa da pessoa à essa minha afirmação expliquei que o mercado está cheio de cursos que se batizaram com esse título, mas nenhum deles é um curso de educação inclusiva, são cursos para a integração de pessoas com deficiência na escola regular. Não estão preocupados em como tornar a escola um local de qualidade para todos mas, apenas e tão somente, querendo preparar pessoas para receber alunos com deficiência.

E se estamos falando de inserção de um grupo específico de pessoas isso não é inclusão.

Também não se trata de inclusão quando esses cursos focam parte do seu currículo nas características fisiológicas das deficiências. Como se para um professor fizesse alguma diferença saber se a cegueira do seu aluno foi provocada por glaucoma, diabetes ou por algum acidente.

E, mesmo se fizesse, nem por isso duas pessoas cegas pelas mesmas causas poderiam ser educadas da mesma forma. As pessoas com deficiência não são pacotes homogêneos de acordo a deficiência que possuem.

O modelo deficitário ressaltado nesses cursos leva as pessoas que o fazem a acreditar que especialistas médicos vão resolver o problema da educação. Isso apenas reforça a idéia de que é o aluno com deficiência é que precisa se preparar para ser aceito na escola. Se fosse inclusão estariam discutindo o que a escola precisa fazer para atender todos os alunos.

Nenhum desses cursos deixa de falar em legislação, pena que sejam apenas os artigos das leis que garantem a educação para as pessoas com deficiência, deveriam estar lendo a LDB inteira e não só um pedaço. Aí sim descobririam que avaliação é algo decidido pela escola e que ninguém é obrigado a dar prova em 50 minutos e notas de 0 a 10.

Um curso que ensine seus alunos a respeito de como educar todas as crianças. Um curso que ensine a explorar o potencial de cada uma. Um curso que fale de escolas que atendam, com qualidade todo mundo. Um curso que ensine as leis e diretrizes da educação do país. Isso sim seria um curso inclusivo.

Para não deixar a pessoa que me questionava na mão, fui ver se descobria algum curso com esse perfil. E descobri. Atende pelo nome de pedagogia.

Educação inclusiva não é uma modalidade de ensino é a própria educação. Não é uma especialidade, se for, deixa de ser inclusiva.

Precisamos de escolas que preparem os professores a serem educadores de todos? Claro que sim. As nossas faculdades de pedagogia hoje preparam seus alunos para serem educadores dos alunos "médios", uma aberração estatística inexistente na vida real. Precisamos de pedagogos que estejam preparados para educar pessoas. Todas as pessoas.

Quando a formação dos professores for inclusiva ninguém vai precisar correr atrás de pseudo-especializações.

O que todos nós precisamos mesmo é de boa educação.

Descrição da imagem: desenho de adultos e crianças formando uma roda. São pessoas de várias etnias, cores, religião e condição física.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Laranja estranha

Mariana era louca por laranjas. Não qualquer laranja, era louca por laranja pera.

Era tão fanática que costumava comprar no atacado. Toda semana ía ao Ceasa e comprava um saco de laranja pera.

Delas fazia suco, saladas de frutas de uma fruta só, as chupava puras. Fazia doces, bolos e tortas.

Nem sempre todas as laranjas vinham perfeitas, algumas chegavam mais secas, outras um pouco amassadas. Mesmo assim Mariana aproveitava todas, de uma forma ou de outra.

Até o dia em que, no meio do seu saco de laranjas pera veio um exemplar de laranja bahia. Para muitos seria apenas mais uma laranja, não para Mariana que ficou perplexa e confusa com um tipo de laranja diferente.

A casca era mais fina, o tamanho maior, o suco com teores diferentes de açúcar e de ácido cítrico.Ela não estava preparada para isso. Não sabia nem por onde começar. Fez uma busca na Internet sobre a tal da laranja estranha. Só encontrou informações sobre os aspectos fenotípicos do citro. Isso não ajudava.

Começou a ligar para amigas. O máximo que descobriu foi que essas laranjas não tinham sementes. Pior foi ter de ouvir da melhor amiga que era uma laranja, e laranjas são laranjas. Que diferença isso ia fazer?

Concluiu que não teria outra alternativa a não ser partir em busca de especialistas. Como iria descascar aquela pele mais fina? Se eram mais doces, como procederia no açúcar da sua famosa compota de laranja? Os gomos maiores não enroscariam no seu processador?

Descobriu várias pessoas que se dedicavam ao estudo e manuseio de laranjas bahia. Uma mulher que era descascologista, com doutorado em bahias. Um agrônomo que tratava de distúrbios de desenvolvimento de citros e até um chef compoteiro que tinha uma instituição dedicada ao desenvolvimento da tal laranja.

Pensou em mandar seu exemplar de laranja bahia para um desses especialistas. Mariana, no entanto, era uma mulher persistente, não poderia admitir que tinha sido derrubada por uma laranja.

Matriculou-se num curso à distância, de capacitação em laranjas. Na primeira aula descobriu que a bahia era só uma das dezenas de espécies de citrus sinensis: Lima, Westin , Rubi, Valencia, Hamlim e Kinkan. O curso não lhe ensinou o que fazer com as diferentes laranjas, mas abriu seus olhos para todo um mundo diverso do que ela conhecia. Também constatou que só com prática de uso de tanta variedade é que ela descobriria como tirar o melhor de cada um dos tipos.

Não perdeu seu amor antigo pela laranja pera, mas descobriu que a vida era muito mais interessante quando as laranjas se misturavam. Era possível fazer sucos usando combinações de frutos mais ácidos com outros mais doces e, até mesmo enriquecer seu bolo de laranja com calda de uma laranja diferente.

Empolgadas partiu para o estudo de tangerinas, depois limões e até mesmo grapefruit.

E, assim como fazia com a laranja pera, Mariana nunca desperdiçou nenhum dos seus cítricos.

Uma verdadeira mestra.

Descrição da imagem: uma laranja bahia ainda presa no galho da laranjeira.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Xiita Convidado - Síndrome de Down não é doença?

José Moacir de Lacerda Jr*

Bem... essa é uma afirmação que, por mais que todos que trabalhamos com inclusão queiramos, não é consensual. Muitos médicos ainda consideram que a condição humana determinada pela Trissomia do cromossomo 21 constitui uma doença. Isso se dá, creio eu, principalmente por ela estar inserida no Código Internacional de Doenças (o famoso CID 10) como fazendo parte do grupo de doenças cromossômicas. Assim sendo, seja aqui no Brasil, nos Estados Unidos, Canadá ou Nova Zelândia, se um relatório pede que se designe o CID de uma criança com Síndrome de Down, esse será Q90. Muitos médicos, principalmente alguns geneticistas, defendem a tese de que se a condição normal do ser humano é ter 23 pares de cromossomos, aqueles que tem a mais ou a menos são vítimas de alguma doença (cabe aqui ressaltar que a Síndrome de Down é uma dentre centenas de alterações cromossômicas, muitas delas incompatíveis com a vida).

Do outro lado dessa tênue linha que compreende em seus extremos a saúde e a doença, encontram-se outros médicos, alguns também geneticistas, pais e profissionais de diversas áreas que defendem que a condição cromossômica não caracteriza uma doença e sim, como já dito, uma condição de vida de cada pessoa, da mesma maneira que uns tem os olhos azuis e outros verdes ou castanhos, muito embora esse seja um exemplo que se situa dentro da "normalidade" genética da espécie humana.

Tenho visto que muitos desta rede se posicionam a favor dessa forma de enxergar a condição humana. Eu, particularmente, também me alinho a essa corrente de entendimento, não apenas em relação à síndrome de Down como a outras cromossomopatias, algumas delas, como já disse, incompatíveis com a vida, o que pode fragilizar bastante, principalmente junto aos meus pares médicos, esse pensamento.

Mas afinal, por que decidi escrever sobre a Síndrome de Down ser ou não doença nesta altura do campeonato?

Tenho trabalhado como pediatra nos últimos 20 anos e, independente da linha terapêutica que adote com uma ou outra criança, tenho sempre o mais extremo cuidado de não prejudicar o pleno desenvolvimento de cada uma delas. Isso não significa, absolutamente, negligenciar a oferta de ações que possam beneficiá-las em cada etapa de suas vidas para que ultrapassem períodos de doenças, ou de dificuldades onde apoios possam ser necessários.

Agora, sempre tive muito cuidado em não aplicar terapêuticas que estejam em fase reconhecimento de eficácia ou segurança (quantas catástrofes a medicina já cometeu por falta desse tipo de cuidado) e também de não gerar angústias ou falsas esperanças aos pacientes que buscam não apenas tratamento, mas muitas vezes apenas orientações.Muito bem, Síndrome de Down não é doença e todos, ou quase todos reconhecem isso.

Agora o que dizer das inúmeras terapêuticas prometidas para tratar os transtornos, principalmente os que determinam (determinam??) deficiência intelectual. Quantas associações terapêuticas tem sido realizadas com o intuito de se "turbinar" a capacidade cognitiva de cada uma das crianças a ela submetidas? Às custas de que outros transtornos notadamente conhecidos de cada um desse medicamentos associados?

Vamos lá, Síndrome de Down não é doença, mas quantas promessas tem sido feitas para se normalizar o defeito genético ou se minimizar suas consequências? Terapêuticas do século XXI, XXII ou XXIII? Nanotecnologia, promessas de se consertar a trissomia dentro de cada célula. Ofertas de terapêuticas gênicas que deverão potencializar os medicamentos utilizados para se minimizar os transtornos intelectuais. Super alimentos que se alocarão nos sítios gênicos para otimizar o aproveitamento de seus nutrientes. A possibilidade de se modificar ou alterar a estrutura do DNA através de alimentos.

Digamos que isso um dia venha a ser possível - me perdoem se ouso dizer-lhes EU NÃO ACREDITO - ainda assim pergunto "as custas do que"? As custas de que outras funções orgânicas? E aqueles que não terão condições financeiras de executarem as ditas super terapêuticas gênicas, serão a nova categoria de excluídos a serem incluídos?Agora, se Síndrome de Down não é doença, o que é que se está tanto tentando tratar?

Perdoem-me mais uma vez se levando uma reflexão absolutamente pessoal, mas não posso deixar de pensar na qualidade de vida de nossas crianças, da destruição de nosso planeta e no desenvolvimento espiritual da humanidade. Reflexões causadas, talvez, por catástrofes que tem acontecido tão próximas umas das outras.

*José Moacir de Lacerda Jr é médico pediatra e homeopata em São Paulo. Não por acaso, médico dos meus filhos.

Descrição da imagem: foto do rosto de uma menina com Síndrome de Down