domingo, 19 de outubro de 2025

A língua que exercita o cérebro



Eu vi dos polos o gigante alado,
Sobre um montão de pálidos coriscos,
Sem fazer caso dos bulcões ariscos,
Devorando em silêncio a mão do fado!

Quatro fatias de tufão gelado
Figuravam da mesa entre os petiscos;
E, envolto em manto de fatais rabiscos,
Campeava um sofisma ensangüentado![1]

– “Quem és, que assim me cercas de episódios?”
Lhe perguntei, com voz de silogismo,
Brandindo um facho de trovões seródios.

– “Eu sou” – me disse, – “aquele anacronismo,
Que a vil coorte[2] de sulfúreos ódios
Nas trevas sepultei de um solecismo…”

(Bernardo Guimarães)

Quando ainda éramos crianças, meu pai desafiou a mim e à minha irmã a decorar esse soneto. Os dois sempre fomos muito teimosos em desafiar limites, topamos a parada e ambos alcançamos a meta. Não me lembro se havia algum prêmio envolvido nisso, mas do soneto eu jamais esqueci.

Claro que, além do exercício de memória, também nos exercitamos no uso do dicionário (no caso, um Caudas Aulete, o Aurélio só surgiria anos depois) e aprendemos um monte de palavras cujo significado nunca tinha passado pelas nossas cabeças.

Não é à toa que desde os meus tempos de antanho eu sou apaixonado pelas palavras, bem como das riquezas que elas possuem. Adoro quando me deparo com alguma que desconheço. Pesquiso o significado, a etimologia, suas relações com outros termo. Por isso prefiro sempre recorrer aos dicionários impressos que trazem muito mais informação sobre cada palavra do que o simples significado que apresentam os dicionários online. No caso de palavras estrangeiras, inclusive a pronúncia.

Só adulto entendi o porquê disso, ao me deparar no parágrafo 5.6 do Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein com a afirmação: “os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo”. Se tenho o objetivo de expandir minha compreensão do mundo, preciso expandir meu conhecimento da linguagem.

Pelo mesmo motivo, eu vejo com muita preocupação o movimento de simplificação da linguagem, especialmente quando se refere aos nossos petizes domésticos. Os meus foram criados ouvindo palavras incomuns, também foram desafiados a decorar poemas, até o Bernardo Guimarães. Quando recebia a avaliação da escola, desde a educação infantil eram elogiados por terem um vocabulário rico.

Também não concordo com a simplificação dirigida a pessoas com deficiência (um processo de infantilização). Meu filho tem uma deficiência intelectual, nem por isso faz sentido limitar a expansão do vocabulário dele (e sim, ele decorou não só Bernardo Guimarães como também Camões). Ele sabe o que significa seródio e sofisma, e também sabe como consultar um dicionário.

Além dessas experiências pessoais, existem outras dimensões que reforçam a importância do vocabulário amplo:

O vocabulário amplo permite distinções conceituais mais precisas. Conhecer palavras como "melancolia", "nostalgia" e "saudade" oferece ferramentas para compreender nuances emocionais que um vocabulário limitado não captaria. Isso não é apenas nomear diferente, mas perceber diferente (Dimensão cognitiva).

Palavras carregam história e cultura. Quando perdemos termos como "seródio" ou "bulcões", perdemos também as experiências e observações acumuladas por gerações. É uma forma de amnésia coletiva (preservação cultural).

Um vocabulário rico protege contra manipulação retórica. Quem conhece falácias, sofismas e silogismos tem ferramentas para identificar argumentos enganosos. A simplificação extrema da linguagem pode tornar as pessoas mais vulneráveis a discursos simplistas, especialmente em relação a quem usa  termos vagos como "sistema" ou "elite" usados para obscurecer debates políticos (autonomia intelectual).

Há uma dimensão lúdica no aprendizado de palavras novas. O jogo com a linguagem, a descoberta etimológica, o prazer sonoro das palavras, tudo isso enriquece a experiência humana para além da mera comunicação funcional (prazer estético)

Isso não significa que eu precise ficar falando difícil o tempo todo e com qualquer pessoa. Seria mera arrogância ou, pelo menos, o desejo de não ser compreendido. Cada contexto diferente permite, ou não, o uso de determinadas expressões. Particularmente eu odeio a jargonice indiscriminada de determinadas categorias profissionais[3], assim como respeito os limites de quem não teve o mesmo acesso ao aprendizado que eu e meus filhos.

Vale considerar que nem toda simplificação é empobrecimento. A clareza e acessibilidade têm seu valor, especialmente em contextos educacionais e de divulgação. O desafio está em manter a riqueza disponível sem torná-la obrigatória ou excludente.

Quando escrevi meu livro sobre inteligência artificial (e desinteligência natural) já criticava o empobrecimento do vocabulário das pessoas, um processo que, pelo que tenho visto, parece-me irreversível. Também tenho me escandalizado com erros de ortografia básicos praticados por pessoas que, em tese, não deveriam cometê-los.

A linha da mediocridade está sendo ultrapassada para baixo.

Em tempo: caso você não tenha entendido alguma palavra que usei aqui, fique à vontade para buscar o dicionário mais próximo. Seu mundo só vai ampliar, Bernardo Guimarães com seu gigante alado devorando a mão do fado, acabou sendo mais do que um exercício de memória, foi uma lição sobre como a linguagem expande horizontes.


[1] Eu mantenho a grafia original por ser um inimigo da eliminação do trema

[2] Na versão que recebemos para decorar, ao invés de coorte, constava caterva.

[3] Palavra, palavras, palavras: https://www.adiron.com.br/blog/palavras-palavras-palavras/