quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Educação, valores humanos e a deficiência intelectual


Liliane Garcez – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e membro da Comissão Executiva do Fórum Permanente de Educação Inclusiva.
Fábio Adiron – Comissão Executiva do Fórum Permanente de Educação Inclusiva e 1º. Relações Públicas da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada neste ano pelo legislativo nacional, reafirmou o que já estava disposto em várias de nossas leis: que todas as pessoas têm direito à educação em todos os níveis por ser esta um direito do qual não se pode abrir mão. Esta afirmação reitera que todos somos cidadãs e cidadãos plenos da sociedade.

A deficiência intelectual, assim outras características humanas, constitui parte integral da experiência e da diversidade humana. A deficiência intelectual é entendida de maneira diferenciada pelas diversas culturas o que faz com que a comunidade internacional reconheça para essas pessoas, seus valores universais de dignidade, autodeterminação, igualdade e justiça para todos. Entretanto, como temos conhecimento, esta não foi a visão que embasou o surgimento de instituições, principalmente a partir dos anos 1970, e, sua manutenção até hoje, com o objetivo de fazer uma espécie de preparação ou normalização da pessoa com deficiência com vistas a possibilitar seu re-ingresso na sociedade. Tais entidades foram planejadas e desenhadas para promover a responsabilidade e enfatizar um grau significativo de auto-suficiência da pessoa com deficiência, por meio do trabalho ou do preparo para o trabalho, envolvendo treinamento e educação especiais, bem como um processo de colocação cuidadosamente supervisionado. Ou seja, uma visão tutelar, que a partir de um processo de exclusão inicial, ainda que aparentemente provisório, seria ponte mais aconselhável, quando não imprescindível, para a re-inserção social das pessoas com deficiência.

Hoje, estes dois paradigmas estão em disputa, dado que esta re-integração ou re-inserção prevê enquanto etapa uma segregação inicial, o que não tem compatibilidade com o movimento de inclusão. Ao contrário, é o rompimento da idéia de integração que possibilita a reafirmação da noção de inclusão, entendida como a quebra imediata de barreiras de convívio entre os seres humanos. São dois sistemas e pensamentos conflitantes em termos de seus pressupostos e que, na atualidade, co-existem socialmente. Hoje, por exemplo, é notório observar que a sociedade ainda não abriu mão dos instrumentos de controle sobre essa população dado o domínio de órgãos estatais, consultivos ou executivos, por aqueles que têm interesses econômicos na manutenção da dependência das pessoas com deficiência às instituições; na edição de leis importantes que, mesmo não interferindo em atribuições exclusivas de outros poderes, vinculam sua aplicação à regulamentação posterior e no adiamento indeterminado de regulamentação de leis que permitem o acesso das pessoas com deficiência à informação, à cultura e à educação; na disputa de instituições contra os movimentos inclusivos, sob a alegação que a sociedade, e as escolas, não estão preparadas para lidar com essas pessoas.

Voltemos, então, à afirmação constante na Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência de 2006 e que já estava presente em declarações anteriores como Montreal e Guatemala, de que todo somos cidadãos plenos dado que características humanas não podem servir de justificativa para a segregação, atitude esta definida como preconceito? Recorramos à noção de desigualdade para discutir essa questão. Parece que não dúvida em relação à afirmação de que somos naturalmente diferentes, ou seja, que a desigualdade é própria da espécie humana, e, portanto inerente a todas as pessoas. A despeito dessa desigualdade natural, nós, seres humanos, possuímos mais coisas em comum do que diferenças, ou seja, biologicamente somos todos semelhantes com pequenas variações.

Essa desigualdade natural é muitas vezes aparente, quando observamos os aspectos físicos, e outras tantas, não. De qualquer forma essa variação é objetiva, perceptível de uma forma ou de outra e não carrega consigo um juízo de valor. Por outro lado, há uma segunda idéia acerca das desigualdades: as sociais. Como o nome explicita, são socialmente construídas, carregadas de juízo de valor e podem mudar de acordo com o local ou com a época da história. Essa espécie de julgamento social estabelece uma hierarquia entre seres humanos onde alguns são considerados ideais, os que ocupam o topo, e os demais, classificados comparativamente, vão sendo distribuídos nos níveis inferiores da pirâmide. Cada um de nós constrói seus parâmetros a partir das relações que estabelece em casa, na escola, nos grupos de amigos. E, por conta de uma educação que tem naturalizado essa olhar classificatório ao longo de muitos anos, mesmo que não usemos essa terminologia, olhamos para as pessoas com deficiência como cidadãos de 2ª. 3ª ou 4ª categorias. Pessoas que, em nosso pensamento, são inferiores, pois estão cheias de defeitos em relação a nós mesmos.

Quando encontramos uma pela frente, nosso olhar, nosso sentimento e pensamento se direcionam imediatamente para aquilo que elas têm de déficit, de inferior, para aquilo que elas (pessoas) precisariam corrigir em si mesmos para poderem se tornar um de nós – seres de primeira. O curioso é que também estamos sujeitos a esses julgamentos, ou seja, o reverso acontece simultaneamente conosco: dependendo do lugar onde está, qualquer pessoa que era (ou se julgava) de primeira linha pode tornar-se um ser de segunda ou de terceira, pois isso sempre variará segundo o ponto de vista de quem olha e avalia. Por este motivo podemos dizer que esse olhar deficitário é uma questão ideológica. O que se esconde atrás dessa atitude é a rejeição da diversidade como valor humano, que tem como conseqüência a perpetuação dos preconceitos entre as pessoas, determinando a priori que essas desigualdades são insuperáveis e que o mundo é um lugar para alguns tipos de seres humanos. Essa incompreensão da diversidade como valor implica que nós educadores pensemos que os processos de ensino deveriam ser divididos de acordo com a escala hierárquica de cidadania que construímos na nossa sociedade. Passamos a acreditar que é melhor que existam especialistas em lidar com crianças de rua, outros que entendam de pessoas com deficiência (nesse caso vários – um para cada tipo de deficiência), pessoas que sabem ensinar em cárceres. Da mesma forma que, no passado, a sociedade defendia com veemência a necessidade de escolas separadas para meninos e meninas para o bem de ambos. E, não sem muita luta, esta certeza foi desconstruída. Se antes, várias pessoas não tinham acesso à educação, pois eram vistas como ineducáveis, paulatinamente foi sendo erigida a preocupação social pela sua educação, que seria mais “aconselhável” acontecer de forma paralela à educação regular com justificativa semelhante: de resguardar e atender melhor aquelas crianças já tão sofridas.

Como já mencionado, atualmente, embora se proponha que todos os alunos devam estudar juntos em escolas regulares, são muitos os que se colocam como despreparados para esse exercício de convivência, perpetuando, como educadores, esse sistema de castas de aprendizagem. Essa prática discriminatória é, portanto, uma forma de manter a tutela sobre aqueles que a sociedade considera inferiores. Em outro exemplo, chegamos a defender que a escola pública é boa mesmo para os pobres. Isso não seria um reflexo da nossa crença de que há uma elite, que, por sua capacidade superior, deve conduzir esse monte de gente ignorante que existe por aí? Por outro lado, esse pensamento abre não a possibilidade que na escola pública admitamos um ensino de segunda ou terceira categoria dado o público alvo?

Os relacionamentos com as pessoas com deficiências, pobres e outros grupos em desvantagem social, assim, ainda se orientam por conseguir alcançar comportamentos sociais controlados, quando deveriam ter como objetivo que essas pessoas adquirissem cultura suficiente para que pudessem conduzir sua própria vida. Ainda vivemos em um modelo assistencial e dependente quando deveríamos buscar um modelo competencial e autônomo. É um modelo baseado no déficit, que destaca mais o que a pessoa não sabe fazer do que aquilo que ela pode realmente fazer, confundindo diferenças naturais com valores sociais, ideologizando a questão: é a não-aceitação da diversidade como valor humano e a perpetuação das diferenças entre as pessoas que estabelece essas diferenças como dados de realidade e não passíveis de serem transpostos pessoalmente e socialmente.

A sociedade inclusiva é aquela onde o modelo das relações subverte essa lógica, e por esse motivo não é uma continuidade ou evolução do mesmo modelo. Nela, há o investimento social para que as pessoas adquiram e desenvolvam estratégias que lhes permitam resolver problemas da vida cotidiana e aproveitar as oportunidades que a sociedade pode oferecer. Às vezes, essas oportunidades lhes serão dadas, mas, na maioria das vezes, terão que ser edificadas e, nessa construção, as pessoas com deficiência têm que participar ativamente – o que é mais um ponto significativo da declaração que propõe a participação das próprias pessoas com deficiência intelectual na construção de políticas públicas.

A cultura da diversidade é uma maneira de viver que parte do respeito à diversidade como valor. E diversidade não é um determinado grupo, e sim as diferenças que constituem o grupo humano. É a cultura da diversidade que vai nos permitir construir uma escola de qualidade, uma didática de qualidade e profissionais de qualidade para todos. Nela a quantidade e a qualidade não estão dissociadas, dado que se referencia nas necessidades contextualizadas e se aprimora pela participação social. É nesse compartilhar constante entre profissionais, familiares e comunidade atentos a inclusão cultural e social de todos que se constrói o aprimoramento da educação e da sociedade!

Referências Bibliográficas

Brasil. DECRETO nº. 186, de 09 de julho de 2008. Aprova o texto da Convenção sobre os Direitos das pessoas com deficiência e do seu protocolo facultativo. Nova Iorque, 2007.

Brasil. DECRETO nº. 3.956, de 08 de outubro de 2001. Promulga a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência. Guatemala, 1999.

Declaração Internacional de Montreal sobre a Inclusão. Congresso Internacional “Sociedade Inclusiva”. Montreal, 2001.

GARCEZ, Liliane. Da Construção de uma ambiência inclusiva no espaço escolar. Dissertação de Mestrado. FEUSP, 2004. São Paulo.

Descrição da imagem : cartoon de um grupo de pessoas com e sem deficiência posando para um fotógrafo


Nenhum comentário: