quarta-feira, 27 de maio de 2009

A imperfeição de todos nós

Minhas conversas virtuais com o MAQ sempre são ricas em reflexões e significados. Aprendemos muito um com o outro. Dentre os meus muitos interlocutores, credito a ele algumas mudanças de idéias que tive durante a minha carreira no movimento em defesa dos direitos das pessoas com deficiência (tudo bem, tem algumas coisas que nem ele me convenceu do contrário).

O papo mais recente surgiu com a publicação de "Em compensação..." texto onde afirmo que o uso dos termos compensação e superação são formas sutis de rejeição da diversidade. O papo enveredou pelo video do Breno Viola e da Virginia Vendramini no programa Assim Vivemos.

A questão é se por um lado ele acha esquisito dizer que tal pessoa é uma grande artista com deficiência, pois se ela é uma grande artista a deficiência não tem papel algum em sua inclusão, mas sua arte sim, por outro lado, não há como negar, se a pessoa do artista tem uma deficiência, que aquilo a deixa igual na diferença e que a diferença existe. A diferença existe e identifica as pessoas que a tem. Mas, onde está o limite entre a identidade da pessoa, do artista, da deficiência e de outras características que a pessoa tenha?

O fato de uma pessoa ser uma artista com deficiência valoriza ou não a sua arte?

Eu me coloco outra pergunta: a tapeçaria da Virgínia é boa porque tem valor artístico e estético ou porque ela é cega ? Se for por valor artístico, tanto faz o fato dela ser cega ou não que os tapetes são bons. Se for pelo fato dela ser cega, então é pura piedade. O fato do tapete ser bom e ela ser cega acaba sendo uma coisa surpreendente para as pessoas que não acreditam que as pessoas com deficiência são capazes de fazer as mesmas coisas (ou seja, para o mundo, essas pessoas são quase normais...). Isso acaba sendo um reforço do conceito de superação. Apesar dela ser cega consegue fazer isso ou aquilo.

Isso acaba sendo decorrente dos mitos a respeito dos limites das pessoas com deficiência. Para a população, determinadas deficiências seriam impeditivas de determinadas ações. E, claro, surpreendem-se quando descobrem que não é. Mas ela continua sendo uma pessoa cega. Isso não vai mudar.

Eu não gosto muito desse conceito de identidade associado a essa ou aquela deficiência (ou a essa ou aquela etnia, nacionalidade, religião, orientação sexual ou qualquer adjetivo que segregue um grupo da população dos demais). Acho que isso só serve para estereotipar as pessoas que tem alguma característica que a diferencie da média da população.

Para mim o MAQ é cego, mas é um cego diferente da Virgínia, com habilidades e competências que são exclusivas da sua individualidade e não de uma suposta identidade dos cegos. Eu não sou cego e não tenho a menor competência para bordar tapetes. Isso me diferencia mais da Virginia do que o fato dela enxergar ou não.

Acredito que a inclusão vai se dar quando as pessoas forem valorizadas pelo que elas são, independentemente de terem ou não deficiência, o que não nega a deficiência, mas se concentra no potencial da pessoa e não no seu déficit.

No mesmo texto, o Gil Pena, outra pessoa que faz parte do conselho da minha consciência crítica, afirma que todo aprendizado cultural se faz no sentido de compensar as nossas incapacidades, contornando as limitações que todos nós temos.

Concordando e expandindo essa verdade, se todos temos, em algum momento de compensar alguma incapacidade para provocar o nosso próprio desenvolvimento, então essa ação é comum a todas as pessoas e não somente às pessoas com deficiência (mas, cuidado, não caia na tentação de dizer que somos todos "deficientes", que é apenas outra falácia para desvalorizar a diversidade).

Assim sendo, a compensação ou a superação passam a ser inerentes à unica identidade que nos une, que é a de sermos humanos.

Descrição da imagem : uma xícara em arte wabi-sabi. Wabi-sabi (?) representa a uma visão de mundo e estética da cultura japonesa centrada na aceitação da transitoriedade e da imperfeição das coisas. É chamada de " a arte do imperfeito, incompleto, não permanente"

7 comentários:

Alexandre Carrasco disse...

Fábio, há duas coisas que gostaria de considerar: o fato de uma pessoa com deficiência ser um artista, ou produzir objetos ou conceitos de valor artístico, não está absolutamente descolado do fato de ela ter deficiência, parece-me, porque acredito que a prática artístico tem um componente moral: é a singularidade daquela pessoa (com ou sem deficiência) que de algum modo (complexo e humano) se desdobra numa prática específica, só reconhecida por nós. Se isso vale para qualquer um - a obra, a prática artística dá um sentido humano para um situação de partida enigmática (o que é ser homem?) - para o portador de deficiência vale no mesmo sentido: a resposta que ela dá à deficiência a ultrapassa, mas não escamoteia a deficiência porque a incorpora como condição humana. Só que essa consideração é complexa: não é a deficiência que deve sobredeterminar (ou mesmo relativizar) a obra, mas o inverso: é a obra que reinventa a deficiência. Acho que tenho o mesmo incômodo que o teu: não acho que haja uma arte "de portadores de deficiência" ou "de afro-brasileiros" ou mesmo uma literatura "feminista". Nem estas gavetas devem permitir ocasião para a piedade segregacionista tão comum. Acredito que as várias formas de experiência e possibilidades humanas convergem para a possibilidade da compreensão pelo outro.
Também penso que é um perigo para a inclusão ampla geral e irrestrita que ela se apóie em "artistas". Ninguém tem de ser artista ou realizar "coisas extraordinárias" para ser incluído. Pelo contrário.
Só para completar: todos não somos deficiente, mas todos somos singulares, e isso também conta para a inclusão. Bom, estou aprendendo e tenho ainda muito que aprender sobre inclusão e deficiência. Essas consideração são apenas uma primeira tentativa de formalização. Abraços, Alexandre.

Katia Fonseca disse...

Oi Fábio

Como artista (pelo menos eu me considero) e como pessoa com deficiência, colaboro nessas reflexões afirmando que o fazer artístico e a deficiência é uma somatória. As duas coisas estão intimamente ligadas. Quem poderá dizer que a arte que faço seria a mesa se eu não tivesse uma deficiência? Aliás, acredito que eu mesma, em minha essência, em minha alma, não seria a mesma se não tivesse a deficiência que tenho. Muito mais do que algo externo (já que minha deficiência é física), a condição de pessoa com deficiência é interna, intrínseca e é parte importante (senão fundamental) da minha personalidade.
Mas estou totalmente de acordo que não se deve valorizar mais ou menos o produto artístico pelo fato de o(a) autor(a) da obra ter ou não uma deficiência. Arte é arte (independentemente de quem a produza)!
Um beijo

Katia Fonseca

Unknown disse...

Fábio, boa tarde de sexta-feira!

Só nos encontramos uma vez presencialmente em toda a nossa trajetória de conversas. Nossa admiração é mútua e seria muito difícil não admirá-lo, pois você é um dos imprescindíveis que Bertolt Bretch citou.

Gostaria que me respondesse o seguinte: quando pensa em mim, o MAQ, sei que minha personalidade e mais um conjunto de coisas se amoldam em uma substância pessoal chamada MAQ. Nisso tudo não lhe vem minha cegueira? Não que seja um farol, algo mais importante que o todo que sou, mas se pensar em mim não lhe vem meu óculos escuros ou uma bengala, ou meus olhos, ou de alguma forma minha falta de visão? Não existe nem um pouquinho disso no qque lhe amolda à mente?

Quando penso em Fábio Adiron vem em mim sua luta, sua cotundência no que acredita, o xiita da inclusão conforme você mesmo acabou por se autodenominar. No entanto, entre suas inúmeras características me vem à mente o fato de você ser pai de Samuel e, que Xiita da inclusão você seria se não existisse Samuel e a síndrome de Down em sua vida? A deficiência também te caracteriza. Você não é você por causa da deficiência de seu filho, mas porque é um cara de personalidade forte, com experiências anteriores à de ser pai, porque você é você. Entretanto, a partir do momento que nasceu Samuel e sua deficiência bateu em Fábio, Fábio pegou tudo que era e nasceu novamente para um novo ser, aproveitando-se de todo o cabedal e potencial de sua força como pessoa. Pronto, não tem jeito, Fábio... seus discursos, seu feitiço, seu jeito de ser não tem mais como desgrudar do rótulo de ser pai de uma criança com SD. Tudo que você escreve, e até tudo que não tem nada a ver com deficiência, tem sua experiência de xiita acrescentada.

Talvez você pense que isso seja discriminação negativa por parte de algumas pessoas, talvez até de toda a sociedade, caso não goste que te rotulem como pai de uma criança com síndrome de Down. Que é uma discriminação isso é, se é negativa, talvez seja por parte de alguns que acrescentem a isso pena, mas o fato é que Fábio Adiron é, sem dúvida, Um sujeito muito legal e que é pai de uma criança com síndrome de Down. E não adianta também... para você mesmo você é um pai de criança com síndrome de Down por mais que queira incluir sua filha em sua paternidade. Sim, porque só um pai de criança com síndrome de Down é um pai de criança com síndrome de Down e quando esse pai é Fábio Adiron, que combina com Down, é um pai consciente, lutador, mestre e aluno, é a pessoa e o pai que admiro. Você vai poder fazer qualquer coisa que esse fato não vai desgrudar de você, já faz parte. Quem seria você sem essa característica? Não sabemos, não é bom lidarmos com hipóteses. Isso agora está em seus escritos e se pintasse um quadro... fizesse uma tela, uma tapeçaria... seria esse Fábio Adiron da mesma forma.

Abraços de um cego e fã. MAQ.

Fábio Adiron disse...

MAQ

Não discordo em uma vírgula de você.

Mas note uma coisa, não existe uma "identidade" que atenda pelo nome de "pai de criança com SD", eu poderia ser qualquer outro pai, desde os engajados até daqueles que abandonam o lar quando nasce o filho com deficiência.

Não posso separar o Fábio do fato do Samuel ter SD, mas a síndrome de Down do Samuel é um componente de um todo que inclui muito mais do que isso (talvez, se não estivesse no movimento das PCD´s estaria envolvido em alguma outra causa).

Quando olho para o MAQ é impossível não notar que usa óculos e bengala. Mas o MAQ que eu conheço vai muito além disso.

Somos seres muito mais complexos do que uma ou outra questão que nos defina

Abraços simples

Fábio

Gil Pena disse...

Fabio, MAQ, todos,
O que nos define a nós próprios, eu não saberia escrever nesta janelinha de comentários. Em geral nos reduzimos a determinados rótulos, que de um modo ou outro, apreendem determinadas características nossas, ao passo que ignoram outras. Definir-me como pai da Sofia, o que omite numerosas características minhas, de alguma forma, me coloca na mesma categoria do Fabio, pai do Samuel. Mas eu e o Fabio somos sabidamente diferentes. Mas estamos ligados de algum modo com a deficiência, o que nos coloca em também numa categoria junto ao MAQ. (será isso mesmo?)
Falando por mim (mas tenho certeza que é o mesmo que ocorre com o Fabio ou o MAQ), eu já era o Gil antes de tudo. Qualquer mudança que ocorre em minha organização, decorre exatamente de minha estrutura possibilitar o acoplamento congruente com novas situações. As mudanças de organização que passo, correspondem ao desenvolvimento ontológico do processo de conhecer o mundo. Não há distinção evidente entre conhecer e viver. Como observadores, podemos ver o Fábio ou MAQ (ou eu mesmo), e explicar o que são, a partir da história de seus acoplamentos estruturais e suas mudanças significativas da organização, e como conseguiram manter a sua estrutura. Como observadores, podemos atribuir um papel significativo, decisivo, a eventos como ter um filho com síndrome de Down ou ficar cego, mas esses eventos apenas fazem parte da ontologia organizacional, e a nossa interação com eles depende do que nossa estrutura possibilita.
Nós não nos definimos pela nossa organização, pois ela se organiza e se reorganiza a todo o tempo, mediante a interação e acomplamentos estruturais que fazemos com o meio e com outras pessoas. Nos definimos estruturalmente.
Atribuir um significado decisivo ao fato de ser pai de uma pessoa com Síndrome de Down, corresponde a um incompreensão de nossa organização e estrutura como humanos. É essa estrutura subjacente à nossa organização que nos define. Não o fato de ser artista ou ser cego, ou ser artista e ser cego.
Gil Pena

Unknown disse...

Não sei se concordo ou discordo...
Eu sou a Ana. Sou também mãe do Rodrigo, ele me deixa de cabelos em pé....Ele é um ótimo patinador, mas não quer competir, só quer se divertir. Ele também é deficiente auditivo. Todos comentam comigo a sua habilidade, eu sou orgulhosa desse filho.
Tempos atrás uma colega me contou que algumas mães comentavam como ele era querido, como patinava bem...mas tinha horas que era tão desligado. Então a minha amiga falou que talvez fosse quando ele tivesse sem aparelho. E todas ficaram surpresas, porque não sabiam que ele tinha dificuldade para escutar. Então ele realmente é bom na patinação e as pessoas reconhecem.
Bem, por outro lado desde pequeno ele desenha com uma habilidade fora do comum, percebe detalhes, perpectivas e sempre me pareceu estar relacionado a sua defiência, que só foi descoberta por nós aos seis anos, e durante um bom tempo ele teve que se virar. Fazia leitura labial. Meu filho é especial não na que idéia pejorativa que usam para os deficientes simplesmente porque meus dois filhos são especiais para mim.

Estou iniciando nestes debates, podem discordar...porque aprendo um pouquinho a cada dia.

Ana Araujo

Fábio Adiron disse...

Ana

Na verdade acho que seu comentário só reforça o que escrevi. Obrigado pelo depoimento.