quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Xiita Convidada - ...sua filha não é retardada...

Zelinda Martins*

Eu gostaria de tecer alguns comentários acerca do uso da palavra 'retardado'. Mas, para tanto, acho que alguns princípios lingüísticos têm de ser lembrados.

Por muito tempo, considerou-se culto aquele que falava ou escrevia de forma 'difícil'. Ou seja: o emprego de construções rebuscadas e termos raros, pouquíssimo comuns, bastava para conferir erudição ao discurso. Por esse viés, promovia-se uma hierarquização por meio do saber, um 'afastamento' dos não iniciados. O resultado era, muitas vezes, um discurso hermético, que pouquíssimos - propositalmente - compreendiam.

Atualmente, o falante ou o escritor culto é aquele que sabe se adequar às mais diversas situações e aos mais diversos interlocutores ou leitores. E essa nova atitude é trabalhosa, pois é essencial empreender um movimento empático. Assim, é preciso, além de perceber o outro, rever-se e 'calibrar' as palavras e as atitudes.

Pode até parecer que é uma empáfia, já que, dessa forma, se escolheriam as palavras de modo a fazer que os outros compreendam, por vezes subestimando-os. E se voltaria então à detenção do poder, do saber... Contudo, o que se deseja é que a fala e a escrita sejam simples, que atendam a sua intenção primeira que é a de persuadir o outro. Isso não quer dizer que a linguagem usada deva ser simplória ou simplista. Um grande exemplo é Guimarães Rosa, que por meio de seus volteios e criação de novas palavras, faz-se se entender mais do que bem e ainda encanta os leitores.

A adequação é, dessa forma, essencial para a comunicação e indica que um percebeu o outro, criando-se espaços para, durante o diálogo, construírem-se mutuamente. Usou uma palavra desconhecida? Não foi entendido, não se fez entender? Então, busca-se outra, aprendem-se novas...

É preciso estar consciente do 'lugar da fala', um conceito muito importante, pois determina limites e possibilidades. Assim, a pessoa se percebe várias, pois há muitas situações no cotidiano e cada uma delas determina a forma de se comunicar. Dessa maneira, mesmo sendo única, sou esposa, sou mãe, sou professora, sou filha, sou irmã, sou amiga, sou desafeta, sou vizinha, etc, etc...

As pessoas vestem máscaras - não no sentido de serem mascaradas - que definem seus lugares de fala. Volta, novamente, a questão da adequação, que norteia a comunicação. Quando a pessoa se situa - não somente ocupa um espaço -, ela sabe que não falará com um grande e velho amigo da mesma forma que fala com a senhora com quem se encontra pela primeira vez, mesmo que se verse acerca do mesmo assunto.

Outro princípio importante é a economia. A língua é econômica, no sentido de que não há duas palavras que signifiquem a mesmíssima coisa. Usam-se sinônimos, mas mesmo em uma lista deles, há gradação. Assim, 'feio', 'horrível' e 'horripilante' guardam um traço semântico comum, mas não querem dizer o mesmo. Daí, como se faz? Como proceder a escolha da palavra? E se a palavra vier com um ranço pejorativo? E se eu não percebê-la pejorativa? Como se adequar, enfim?

Um exemplo de como essa dúvida, esse receio de não ser politicamente correto, pode beirar o inusitado: em um edital de concurso público, havia a possibilidade de isenção da taxa de inscrição para candidatos pobres. Quem escreveu o edital considerou pejorativo (ou excludente, mal-educado, etc, etc) a palavra 'pobre'. Daí, empregou: '...aqueles com hipossuficiência financeira...'.

Eu acho que tudo é questão de as pessoas se reverem e questionarem os próprios valores. E isso é árduo. Outro dia, conversando com uma amiga que é fisioterapeuta, ela me disse que o irmão dela parecia um retardado. Eu fiquei surpresa e até decepcionada, pois ela é fisioterapeuta há muitos anos e atende os mais diversos e complicados casos. Eu disse a ela para não usar aquele termo e na hora ela procurou se retratar: 'Zelinda, sua filha não é retardada...'. Eu respondi que não esperava desculpas, que não era o caso. Eu esperava que ela adequasse as palavras, principalmente ela, que está 'imersa' no ambiente da recuperação, da terapia...

Daí, ela começou a descrever o comportamento do irmão e eu consegui concluir que ele estava se fazendo de tolo, de desavisado. E ela concordou. Então, eu questionei o porquê de ela usar o termo 'retardado', quando este não é o mais indicado. Passou uma semana e ela disse que tinha ficado pensando no que eu falei. Acho que é essa a tal da 'calibragem' na comunicação.

Eu fico pensando: se para ela, que está tão ligada a pacientes com dificuldades, com limitações, usar indiscriminadamente 'retardado' é tranqüilo, como é para as demais pessoas?

Nós nos comunicamos por meio de metáforas e metonímias de forma muito freqüente e intensa, sem nos darmos conta disso. Ninguém pára para pensar no sentido de 'céu da boca' ou 'Ela é uma flor.'... Contudo, há sentidos que se banalizaram e são muito mal empregados. Assim, se a pessoa erra um caminho ou demora para entender uma piada, entre outras situações mais que corriqueiras, ela já é chamada de retardada. E a definição, apesar de tão clara ('...diz-se de ou indivíduo cujo desenvolvimento mental está aquém do índice normal para sua idade...'), é estendida para tantas situações...

E o problema é que a pessoa que emprega esse termo indistintamente acha que realmente não há problema algum, pois ela se sente respaldada pelo 'Todo mundo usa, larga de ser chato...'. E isso quando não ocorre a reversão, quando se transfere para quem reclama, chama a atenção, o impasse: 'Você que está sendo preconceituoso me criticando...' . A melhor de todas as desculpas é quando se clama pela liberdade de expressão...

Sabe, é preciso desconfiar do senso comum e posicionar-se, sim. Eu disse à minha amiga fisioterapeuta que meu toque não era por causa da Julia, pois mesmo antes de ela nascer, eu nunca achei o termo 'retardado' - usado de forma pejorativa - adequado. Eu disse que meu toque era para que ela se tornasse uma pessoa melhor.

Houve um episódio interessante, quando eu dava aula em uma sexta série: duas alunas se estranharam e começaram a se agredir. Daí, acalmados os ânimos, eu disse que só retornariam à minha aula se os responsáveis viessem conversar comigo. Vê se não é de chorar: as mães eram piores que as filhas! Tudo estava super explicado e justificado, pois os 'desvalores' eram os mesmos, literalmente passados dos pais para os filhos...

Eu acho que os valores são passados principalmente pelo exemplo. Às vezes, não é preciso falar, pois apenas agir de determinada forma já expressa o que é educado, elegante, gentil... E também o que é carregado negativamente é passado. Na semana passada, Julia e eu esperávamos a vez dela na fono. Daí, saiu da sala um moço com deficiência auditiva, que se esforça muito para falar, mesmo não ouvindo. Julia observou, deu tchau para ele e depois puxou a Luiza, a fono, bem pertinho e comentou baixinho que ele falava esquisito. A reação da fono foi de surpresa, pois ela comentou que outros pacientes, já adolescentes e com discernimento, não têm o cuidado da Julia, o de não comentar perto da pessoa, para não magoar. Senti orgulho pela sensibilidade da minha filha.

O caminho de conscientização é longo e não se sabe se há luz no fim do túnel. Contudo, se a pessoa se sentir incomodada com as inadequações, mesmo sendo tão prevalentes, deve se posicionar, sim. Abaixo a banalidade!

Em tempo: acabei falando da linguagem verbal, mas a comunicação vai além dela. Qual a mensagem da mensagem? Por que a pessoa que precisa emagrecer recebe de presente uma caixa de bombons? Por que não visito aquele parente acamado? Por que mandam-se flores sem um motivo ou uma data especial? Por que se constroem prédios sem acessibilidade?

*Zelinda Martins é professora de língua portuguesa e uma encantada pelo mundo das palavras. Das palavras bem ditas e bem escritas, das palavras caladas e, por vezes, silenciadas. É mãe de Julia, uma quase moça de 11 anos, muito talentosa e bem-humorada. Julia tem Síndrome de Down.

Descrição da imagem : cartoon de uma criança em cadeira de rodas parada junto a uma escada, no final da escada está a escola.

4 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns à Zelinda. Adorei o texto. Vou divulgar!
Denise - BH

Shizue disse...

http://jardimsensorial.blogspot.com/

Fábio Adiron disse...

Shizue

Não entendi...isso é propaganda?

Regina de O. Heidrich disse...

Você recebeu o prêmio Dardos.
Dê uma olhada no meu blog

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Um abç
Regina