terça-feira, 16 de setembro de 2008

Xiita Convidado - Paulo Freire e a inclusão

Gil Pena*

Estranho o desmerecimento ao Paulo Freire. Só possível dentro da lógica da Revista Veja. Em geral, não a leio; apenas quando alertado por alguém de algum absurdo mais evidente, é que procuro saber o que a Revista fez.

Paulo Freire é um educador respeitadíssimo no mundo. Sugerir que sua obra se refere a doutrinação de esquerda é no mínimo estranho. Sua obra (e creio sua vida) está toda dirigida a construção da pessoa, sua inserção no mundo como sujeito. A percepção do humano como ser dialógico é uma contribuição muito além da fronteira política ou partidária.

Não encontrei ainda em seus escritos uma consideração sobre a educação inclusiva, pois seus textos tratam de Educação, e a Educação é aquela que inclui o outro. Sua proposição de transformar o mundo por meio do diálogo é uma maneira de lutar pela inclusão. Acho que como início, todos deveríamos ler A pedagogia do oprimido, para buscar entender como nos fazem entender o nosso lugar no mundo e como construindo-nos sujeitos da história, trabalhar para transformar essa realidade.

Vou me permitir reviver um texto mais antigo, onde procuro situar como podemos entender a inclusão e a diversidade a partir da leitura de Paulo Freire.

Fiquei com a incumbência de falar sobre a inclusão e a visão da diversidade na concepção de Paulo Freire(!) Bem, não li tudo de Paulo Freire (aliás, bem pouco) e não encontrei exatamente uma alusão à inclusão ou a diversidade. Embora não necessariamente dirigido a essa luta, contudo, há muito a aprender com Paulo Freire nesse campo, muito embora o aprendizado que se faça de seu escrito possa estar muito além das palavras e frases.

Ler, como diz o próprio Paulo Freire, é coisa séria, e o leitor deve ler criticamente, reescrevendo o que o autor escreveu.

Numa reescrita, eu diria que a diversidade é uma luta pelo respeito e igualdade de direitos a diferentes grupos de pessoas, que se encontram marginalizados na conjuntura atual. Esses grupos marginalizados, são domesticados, silenciados e inferiorizados pelo grupo dominante. Ao aceitarem a visão imposta pelo grupo dominante, esses próprios grupos marginalizados incorporam os valores outorgados por esse grupo, e se vêem e se constroem como pessoas inferiores.

Na ruptura desse processo de dominação, os grupos marginalizados têm de desenvolver a consciência crítica, e entender o por que de as coisas estarem sendo dessa maneira, e trabalhar para mudar o jeito em que as coisas estão. Nesse trabalho, as lideranças e as pessoas marginalizadas trabalham no sentido de resgatar a própria cultura, construída a partir da realidade em que estão inseridos. É preciso romper com a educação bancária, em que o conteúdo é depositado no aprendiz, que passivamente o aceita como é. Na visão de Freire, o educando, em conjunto com o educador, tem de ativamente reconstruir o conhecimento, a luz de sua própria realidade, de modo que esse conhecimento seja objeto de sua avaliação crítica, e contribua para a sua releitura do mundo.

Acontece, que o grupo dominante, quer que as coisas continuem como estão e haverá resistência às mudanças, de modo que esse processo gera conflitos. Nesse sentido, o texto de Freire propõe uma ação cultural para a libertação, em oposição à cultura vigente, imposta pelas classes dominantes.

E por onde passaria a inclusão? Aí a discussão é complexa, porque enquanto grupo dominado, queremos ser 'aceitos' e participar do grupo dominante. É preciso desvelar com calma e profundidade essa realidade. Até que ponto, estamos assimilando a cultura dominadora, até que ponto queremos romper com essa cultura? Até que ponto o grupo dominante nos oferece algum espaço, onde possamos estar inseridos, mesmo como política de silenciar a população excluída.
De Paulo Freire a Habermas e de novo em Paulo Freire, diria que o movimento inclusivo trabalha em ações estratégicas, em que se objetiva algum êxito. O grupo dominante, para manter as coisas como estão, também faz uso das ações estratégicas e administra pequenas concessões, muitas vezes dando ganho não à população excluída, mas às suas lideranças, que desse modo se isolam do movimento inclusivo, no sentido da comunhão que deveriam ter com a população excluída.

O processo de mudança passa pela ação cultural. Não haverá inclusão verdadeira, se lideranças do movimento e a população excluída não trabalharem em comunhão nessa ação cultural. As pessoas ditas com deficiência têm de estar inseridas no movimento e a ação cultural também age no sentido de dar voz a elas, rompendo o silêncio em que estão imersas.

*Gil Pena é médico patologista e pai. Dedica-se a estudos na área da educação, dentro da linha do Projeto Roma.

Descrição da imagem : cartoon de Paulo Freire ensinando numa sala de aula um grupo de adultos a escrever a palavra Povo.

3 comentários:

Anônimo disse...

È óbvio que essa tentativa de desmérito vem da classe dominadora que retém o conhecimento para flagelar os dominados. Não leio revista Veja exceto quando tenho que escolher entre ela e "Caras" em alguma sala de espera.Seríamos muito pobres sem a obra de Paulo Freire.

jayme disse...

Vilma, eu só leio a revista Veja quando não há mais nada a ler -- se houver Caras do lado, eu vou preferir.
Bom, depois do toque do Fábio, fui lá no site ver a matéria sobre educação, e pude mais uma vez perceber a guinada à direitice burra se confirmar. A crítica a Paulo Freire denota um nível constrangedor de desinformação por parte das autoras da matéria (precisa de duas pra falar tanta bobagem?).
Agora, só pra colocar algum condimento na discussão, e indo além da constatação do óbvio, que é o conservadorismo de mercado do semanário da Abril, eu acho que já é hora de superar o esquematismo emburrecedor que nos amarra desde os tempos em que se acreditava na luta de classes como formulada na era industrial. Um livro que pinte Guevara como herói num livro didático para o ensino fundamental é tão emburrecedor e acrítico quanto colocar Roberto Marinho como santo. É a disseminação de um modo esquemático de ver as coisas. Se é verdade que a neutralidade é uma ficção -- e é óbvio que é --, o esquematismo são duas, uma vez que mente ao dizer que toma uma posição crítica e mente ao concretizá-la, como no caso de Guevara ou Antônio Conselheiro. A educação que forma gente intelectualmente autônoma é aquela que consegue ser pluralista. É a que se propõe a compartilhar as diversas visões de mundo. Numa visão maniqueísta e paranóide, que aponte não haver pluralismo, mas apenas o bem e o mal -- um espalhado entre os oprimidos e o outro concentrado na malévola burguesia --, terá sido impossível educar. É preciso recolocar o valor do pensamento crítico -- e não será deificando Guevara que chegaremos a isso.

Fábio Adiron disse...

Jayme : te copiei exatamente por sabê-lo um "admirador" da revista. Eu não acredito em neutralidade, nem na mídia (nisso os americanos são menos hipócritas quando os jornais assumem suas posições), nem na escola (a pluralidade também é um idealismo nosso), nem na vida.

Entre a Caras e a Veja, eu fico com as pessoas na sala de espera...são sempre mais interessantes.