quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Uma questão intelectual

A Declaração de Montreal sobre a Deficiência Intelectual (2004), bem antes da Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência (2007) já trazia novos e relevantes significados. Gostaria de chamar a atenção a respeito de três deles (e recomendar a leitura da Declaração como um todo)

A re-significação semântica

Acredito que a primeira discussão é a questão dos vocábulos deficiência e incapacidade.

Deficiência significa uma condição da pessoa resultante de um impedimento fisiológico

- lesão no aparelho visual ou auditivo
- falta ou lesão motora de uma parte do corpo
- déficit intelectual

Já a discapacidade (um termo que não existe em Português, mas que deveria existir para não se confundir com a nossa "incapacidade") denota um estado negativo de funcionamento da pessoa, resultante do ambiente humano e físico inadequado ou inacessível, e não um tipo de condição :

Ou seja, a deficiência é inerente à pessoa. A discapacidade é construída socialmente.

Por quê deficiência intelectual, ao invés de deficiência mental ?

É mais apropriado o termo intelectual por referir-se ao funcionamento do intelecto especificamente e não ao funcionamento da mente como um todo”. (Romeu Kazumi Sassaki em " Deficiência mental ou intelectual? Doença ou transtorno mental? Artigo publicado na Revista Nacional de Reabilitação, ano IX, n. 43, mar./abr. 2005, p.9-10).

Permite uma distinção melhor entre deficiência mental e doença mental (que também está sendo substituída por transtorno)

Não é uma definição realmente nova, em 1995 um simpósio da ONU já usava essa terminologia . Em 2002 a Confederação Espanhola para Pessoas com Deficiência Mental se tornou a Confederación Española de Organizaciones en favor de Personas con Discapacidad Intelectual.

A toda poderosa AAMR (Associação Americana de Retardo Mental) hoje é AMERICAN ASSOCIATION ON INTELLECTUAL AND DEVELOPMENTAL DISABILITIES (AAIDD)

A re-significação do valor humano

A deficiência intelectual, assim outras características humanas,constitui parte integral da experiência e da diversidade humana. A deficiência intelectual é entendida de maneira diferenciada pelas diversas culturas o que faz com a comunidade internacional deva reconhecer seus valores universais de dignidade, autodeterminação, igualdade e justiça para todos. (Montreal)

Os relacionamentos com a pessoas com deficiência ainda se orientam por conseguir alcançar comportamentos sociais controlados, quando deveriam ter como objetivo que essas pessoas adquirissem cultura suficiente para que pudessem conduzir sua própria vida. Ainda vivemos em um modelo assistencial e dependente quando deveríamos buscar (e muitos buscam) um modelo competencial e autônomo.

É um modelo baseado no déficit, que destaca mais o que a pessoa não sabe fazer do que aquilo que ela pode realmente fazer.

Claro que isso tem um componente ideológico: é a não-aceitação da diversidade como valor humano e a perpetuação das diferenças entre as pessoas, ressaltando que essas diferenças são insuperáveis.

A sociedade inclusiva é aquela onde o modelo das relações subverte essa lógica para que as pessoas adquiram e desenvolvam estratégias que lhes permitam resolver problemas da vida cotidiana e aproveitar as oportunidades que a vida lhes ofereça. Às vezes, essas oportunidades lhes serão dadas mas, na maioria das vezes, terão que ser construídas e, nessa construção, as pessoas com deficiência têm que participar ativamente – o que é mais um ponto significativo da declaração que propõe a participação das próprias pessoas com deficiência intelectual na construção de políticas públicas.

A cultura da diversidade é uma nova maneira de viver que reconhece a diversidade como valor.

A re-significação da autodeterminação

Reconhecer que as pessoas com deficiências intelectuais são cidadãos e cidadãs plenos da Sociedade. (Montreal)

Até aqui, as propostas da Declaração, ainda que rompedoras de paradigmas, ainda seriam digeríveis, com um pouco mais ou um pouco menos de sal de frutas, pelo status quo institucional da deficiência. E é nesse ponto que eu acredito que surgem os grandes conflitos de interesses.

Com a “inovação” filosófica da normalização (anos 70) começaram a surgir novas alternativas denominadas organizações ou entidades de transição – mais protegidas do que a sociedade externa e, ao mesmo tempo menos protegida e menos determinante de dependência que uma instituição total típica.

Tais entidades foram planejadas e desenhadas para promover a responsabilidade e enfatizar um grau significativo (mas não pleno) de auto-suficiência da pessoa com deficiência, através do trabalho ou do preparo para o trabalho, envolvendo treinamento e educação especiais, bem como um processo de colocação cuidadosamente supervisionado. Uma visão tutelar.

Ao se afastar do paradigma da institucionalização (não mais interessava sustentar uma massa cada vez maior de pessoas, com ônus público, em ambientes segregados; interessava desenvolver meios para que estes pudessem retornar ao sistema produtivo), criou-se o conceito da integração, fundamentado na ideologia da normalização, a qual advogava o “direito” e a necessidade das pessoas com deficiência serem “trabalhadas” para se encaminhar o mais proximamente possível para os níveis da normalidade, representada pela normalidade estatística e funcional. (Salete Aranha)

Dessa forma, ainda a sociedade não abriu mão dos instrumentos de controle sobre essa população e, aqui, não refiro exclusivamente às pessoas com deficiência intelectual, mas a todas as deficiências, com instrumentos de tutela :

Na criação de órgãos estatais , consultivos ou executivos, que muitas vezes são dominados por aqueles que têm interesses econômicos na manutenção da dependência dos "deficientes" às instituições ;

Na edição de leis importantes que, mesmo não interferindo em atribuições exclusivas de outros poderes, vinculam sua aplicação a regulamentação posterior... e no adiamento indeterminado de regulamentação de leis que permitem o acesso das pessoas com deficiência à informação, à cultura e à educação;

Na luta feroz de instituições contra os movimentos inclusivos, sob a alegação que a sociedade (e as escolas) não estão preparada para lidar com essas pessoas.

A proposta da Declaração de Montreal é corajosa mas, além de re-significar os direitos das pessoas com deficiência intelectual, vai re-significar toda uma forma de luta por esses mesmos direitos.

Descrição da imagem : Samuel, um garoto com Síndrome de Down, escolhendo livros para comprar

Um comentário:

Anônimo disse...

Precisamos de um novo olhar sobre os seres humanos para ver a beleza da diversidade, e não estou falando de uma olhar romântico não, falo de um olhar real, onde não dividimos as pessoas em pedaços, mas as vemos como seres complexos e interessantes, como na verdade somos.