quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Seres nada imaginários


"Eu também tenho mais de 20 anos de educação especial. A diferença é que eu olho para frente e não para trás." Profa Maria Tereza Égler Mantoan.

No seu "Livro dos seres imaginários" o argentino Jorge Luís Borges descreve uma ave que, segundo ele, faz parte da mitologia do madeireiros americanos. Trata-se do Goofus Bird, pássaro que constrói o ninho ao contrário e voa para trás, porque não lhe importa aonde vai, mas sim onde esteve.

Se você se arriscar a fazer uma busca na Internet vai descobrir que não existe nem a lenda, nem o pássaro. Apenas a maravilhosa imaginação de Borges.

Mas se você se aventurar pela seara da educação vai perceber como a população de Goofus está espalhada em todos os cantos. Chega a ser onipresente, não importa de que habitat estejamos falando. Temos Goofus em todos os países, em todas as regiões. Os bichos se espalham transversalmente desde a educação infantil até os níveis mais elevados do ensino.

Pássaros dessa penagem defendem a decoreba da tabuada, preceituam apostilas, acham que avaliação é um instrumento de competitividade. Alguns até reclamam que o problema das escolas é a universalização do ensino. Todos acreditam que só existem dificuldades de aprendizagem, pois a culpa do mau desempenho é sempre de quem aprende.

Bom mesmo era o passado quando só os privilegiados tinham acesso ao conhecimento.

Nos debates inclusivos, a presença dessa variedade ornitológica chega a ser assustadora. A defesa da segregação como solução educativa para as pessoas com deficiência, a patologização da pedagogia, a idéia de que esses seres não tem capacidade para aprender, exceto as tarefas repetitivas, a fala da pseudo-responsabilidade são ouvidas em todos os pontos cardeais. Imagino que seja esse o som do canto do Goofus.

Claro, sem esquecer o eterno discurso de que não podemos esquecer o nosso passado. E o que trouxe o passado para as pessoas com deficiência educadas em espaços segregados?

Trouxe o analfabetismo quase onipresente entre os adultos com deficiência intelectual. Trouxe a falta de habilitação para o trabalho (ah...mas eles aprenderam a fazer artesanato...). Trouxe a falta de acesso aos bens culturais. Trouxe a falta de perspectiva de autonomia. Claro, também trouxe a eterna dependência das intituições que vivem da tutela daqueles cuja incapacidade foi desenvolvida de forma tão cuidadosa.

Continuam construindo ninhos ao contrário. Preferem olhar de onde vieram, mesmo porque o futuro pode trazer mudanças que essas pessoas não estão dispostas a enfrentar.

Felizmente temos pessoas que estão dispostas a olhar para frente e descobrir como fazer de pessoas com deficiência, seres nada imaginários, cidadãos. São e continuarão sendo bombardeadas pelos Goofus. A vantagem é que, como esse voam para trás e nós para frente, a nossa distância só aumenta.

Obrigado Profa Mantoan por nos ensinar a combater os Goofus. Quem sabe uma hora tenhamos a felicidade de saber que essa espécie está em extinção.

Descrição da imagem : foto da Profa Mantoan falando durante o 4o. Congresso Brasileiro sobre Síndrome de Down (Londrina Setembro de 2008), quando falou a frase que está em epígrafe

5 comentários:

Unknown disse...

Fábio, magnífico esse texto e o seu blog, cujo link está na minha lista de blogs em gpecchio.blogspot

Anônimo disse...

Oi Fábio, boa noite.

O texto está lindo, verdadeiro e, ao mesmo tempo, agressivo. A ave e o ser são um só na procura de si mesmo. Apesar de estar olhando sempre para a frente, meu passado marca esse olhar onde toca. Os meus pensamentos mais felizes são sempre quando me sinto criança enquanto meu futuro mais temerário tem sempre o olhar do adulto. Eu não sei como vivi 52 anos até hoje, é pouco tempo para tanto sorriso! (risos).

Quero ser irresponsável, distraído, incoerente e sempre intenso e apaixonado. Assim, minha criança olha para o mundo. Mas existe a dor, a raiva, as coisas a serem feitas todos os dias que baixam como espíritos maus de um dia atrás do outro. Esse dia há de morrer, como o passado, e me dar mais um sorriso esquecido e lembrado, azul e vermelho, um sorriso muito bom para existir e me fazer existir com ele.

Que a ave e Mantwan sejam dois felizes seres entre nós, pois existem sempre.

Abraços malucos do MAQ.

Anônimo disse...

Ser ave que voa para frente... muito lindo, só por hoje vou me abster das críticas ferrenhas contra os Goofus,também nem precisa, seu texto está completo.

Um abraço

Arimar disse...

Fábio.
A Professora Mantoan é o maior exemplo de competência e coragem na nossa luta pela Educação Inclusiva.Ela nos encoraja, apoia, forma , informa.
Seu texto está prá lá de lindo, profundo, instigante.Nos convida a observarmos os Goofus que nos cercam, e embora eu seja contra os estilingues, é hora de usá-los.
Beijos.
Arimar

...EU VOU GRITAR PRA TODO MUNDO OUVIR... disse...

Fábio!Desculpe invadir o seu espaço.Encontrei seu endereço no blog da Neli Araujo que visito sempre.Sou mãe de uma moça Síndrome de Down e li no texto que postou tudo que sempre pensei,todas as minhas opiniões sobre como a sociedade e as ditas escolas especiais tratam os diferentes:a eles basta o lanchinho e o artezanato que a minha filha até tealiza com muito capricho(produz tapeçarias lindas,mas o faz porque gosta).

Na contra-mão disto lê,escreve interessa-se por filmes e sabe relatá-los.Mas isso foi trabalho meu e de algumas almas também especiais interessadas em fazê-la crescer e participar.Jamais de instituições que vêem em nossos filhos um filão de lucros interminável,com promessas vãs de ensinar-lhes isso e aquilo.Como nada acontece a culpa é dos nossos filhos que não conseguem assimilar nada.Minha filha só se desenvolveu quando se livrou destes especialistas em fazer nossos filhos voarem para trás.

Desculpe o desabafo...aprendi o caminho de seu blog,mas prometo que das próximas vezes diminuirei o testamento,rsrsrs!

Com afeto,meu agradecimento,Sonia Regina