quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Uma reflexão sociológica sobre o momento da notícia

"Se as crianças conseguissem que seus protestos, ou simplesmente suas questões, fossem ouvidos em uma escola maternal, isso seria o bastante para explodir o conjunto do sistema de ensino". (Giles Deleuze)


Algumas horas eu tenho de voltar várias vezes a uma mesma mensagem para tentar descobrir como começar a resposta. Essas são as melhores mensagens que eu recebo pois são aquelas que me provocam a reflexão, que eu acredito seja um dos aspectos mais característicos da vida em rede.

Uma vez tivemos uma discussão no grupo Síndrome de Down se o fato das pessoas mais simples terem menos acesso a informação não diminuia o choque das mesmas em relação ao momento da notícia. A discussão foi muito rica conceitualmente. Minha conclusão é o que se segue.

Segundo Deleuze e Guattari, a nossa existência, aparentemente individualizada e única, vive em um processo permanente, intenso e ininterrupto de desterritorializações e reterritorializações. Não podemos viver sem estarmos inseridos na órbita de algum território existencial. No entanto, ele jamais é fixo ou inalterável, sendo concebido sempre como ponto de partida e não de chegada (aliás como deveria ser concebido o nosso sistema de avaliação escolar...mas essa é outra história)

Queiramos ou não, nossos territórios estão cotidianamente sendo transformados, até inconscientemente, por acontecimentos externos a nós e o momento da notícia é um momento de profunda mudanças de territórios. É como se um estranho em nós sempre estivesse à espreita pronto a atravessar e a metamorfosear maneiras repetitivas e habituais de vivenciar a realidade aparentemente única de cada indivíduo, como se nada pudesse altera-la, modificar a direção, já decodificada pelo lançador, de sua flecha rumo ao futuro.

Quando nós entramos nessa discussão sobre expectativas e conhecimento, desse nosso país onde eu, por ter casa própria e os filhos numa escola particular posso ser classificado como classe A, temos de pensar muito a respeito das questões das realidades individuais e dos territórios ocupados (ou serão invadidos?) pela maioria esmagadora da nossa população. Exatamente por isso é que eu levantei a "lebre" de uma possível realidade poliânica que pode existir a partir da exclusão social que gera a ignorância e que baixa as expectativas.

Quando eu penso em inclusão eu continuo acreditando que ela é uma meta a ser alcançada para todos, e existe muito mais gente excluída do que os nosso filhos ou que a comunidade dos deficientes.

É conveniente realizar uma leitura crítica da nossa história recente. Sobretudo da década de 90 para cá, as palavras de ordem da mídia objetivaram, a todo custo, retroalimentar a idéia de que as classes sociais, não importando quais forem, devem ser cidadãs incluídas na órbita do sistema vigente. Desde o momento da ruína ideológica do chamado socialismo real, expressões, tais como a luta pela conquista de uma cidadania plena de direitos, perderam sua carga de ruptura e passaram a fazer parte do dicionário capitalista, no sentido de que ser incluído passou a significar estar apto a produzir para o mercado, ou melhor, o de alcançar o status de cidadão produtor e consumidor.

Eu gostaria sinceramente que toda a população pudesse ficar chocada com o momento da notícia se isso significasse que essa mesma população tivesse cultura suficiente para entender o que está se passando. Mas eu também gostaria que ninguém se chocasse com o momento da notícia, pelo conhecimento de uma sociedade que tivesse ultrapassado a barreira do preconceito e tivesse chegado a um modelo onde inclusão fosse uma palavra desnecessária - não somente pela lógica liberal capitalista, mas principalmente pelo real respeito ao ser humano.

Me desculpem a prolixidade....às vezes eu sou assim mesmo...

Descrição da imagem : cartoon de um homem sentado escrevendo, milhares de letras saem voando do papel

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

O desafio da inclusão e o papel das artes

A convite do núcleo Morungaba participei de um debate sobre esse tema, junto com a Mara Gabrili (então Secretária Especial da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida) e a Helena Maranhão (da cooperativa Pé com Mão da APAC - Associação de Pais e Amigos da Criança com Deficiência Neuromotora).

Qual é o Desafio da Inclusão?

O grande desafio da inclusão é acabarmos com a sua necessidade. Ponto!

Uma sociedade que não precise mais ter secretarias especiais, porque todas as secretarias estarão preocupadas com todos. Uma sociedade que não fique exageradamente feliz quando a Helena conta que acabou de se formar em Biblioteconomia. Uma sociedade onde o Fábio não precise adjetivar a educação que será de todos.

Esse termo só aparece nas nossas vidas quando começamos a nos dar conta de quantos estão excluídos, e estão excluídos por motivos essencialmente econômicos, não vamos nos iludir. Apesar de estarmos perto do Natal, Papai Noel não existe!

Não acreditem que os escravos foram libertados por idealismo, também existia um pouco disso, mas foram libertados porque os ingleses precisavam de mais mercado consumidor. As mulheres só começaram a ser incluídas quando se tornaram um mercado de consumo independente dos salários dos maridos e pais. Os homossexuais são a atual coqueluche da inclusão porque as empresas descobriram que eles tem dinheiro ! E consomem. Os pobres estão sendo incluídos porque o consumo das classes C e D têm aumentado consistentemente nos últimos anos. Ainda não estamos falando dos miseráveis, esses ainda não são mercado de ninguém.

As pessoas com deficiência são aqueles "estorvos" que geram um monte de despesas sem retorno (adaptações, reformas, versões adaptadas....). O livro digital para cegos não decola porque afronta interesses econômicos. A inclusão escolar tem problemas porque vai contra o modelo competitivo onde cada um quer ser melhor que o outro. A inclusão no trabalho tem de ser enfiada goela abaixo porque essas pessoas "pouco produtivas" (no conceito da sociedade globalizada) nunca seriam contratadas de outra forma.

O desafio que temos para realmente termos uma sociedade que seja justa e acolhedora para todos, é o de construirmos outra sociedade, em que os valores humanos sejam mais importantes que o tamanho do saldo bancário ou as demonstrações de status, de posses e de poder.
Enquanto o ser humano for valorizado pelo que ele tem (e cada vez quer ter mais) e não pelo que ele é, não viveremos em uma sociedade que dispense o uso da palavra inclusão.

O Papel das Artes.

Nessa perspectiva, qual é o papel das artes ?

A definição original e abrangente de arte (do latim ars, significando técnica ou habilidade) é o produto ou processo em que o conhecimento é usado para realizar determinadas habilidades, ou num sentido mais amplo, é o conjunto das atividades humanas que visam a expressão de um ideal estético através de uma atividade criativa.

Em algumas sociedades, as pessoas consideram que a arte pertence à pessoa que a criou. Esse é o conceito de propriedade, de arte como valor de mercado, de copyright. Geralmente pensam que o artista usou o seu talento intrínseco na sua criação. Essa visão (geralmente da maior parte da cultura ocidental) reza que um trabalho artístico é propriedade do artista. É o conceito da exclusão do acesso a esse capital privado.

Outra maneira de se pensar sobre talento é como se fosse um dom individual do artista. Os povos judeus, cristãos e muçulmanos pensam dessa maneira sobre a arte. É um conceito individual na criação mas não obrigatoriamente no acesso à coisa criada.

Outras sociedades pensam que o trabalho artístico pertence à comunidade. O pensamento é levado de acordo com a convicção de que a comunidade deu ao artista o capital social para o seu trabalho. Nessa visão, a sociedade é um coletivo que produz a arte através do artista, que apesar de não possuir a propriedade da arte, é visto com importância para sua concepção.

Esse sim é um conceito inclusivo, todos podem criar e produzir a partir de um mesmo contexto social, e a comunidade que ofereceu esse contexto social vai ser beneficiária dessa cultura que ela mesma gerou.

Mas, para chegarmos a essa concepção, precisamos renunciar a alguns absolutos, como diria o Prof. Lino de Macedo e, agora falando especificamente das pessoas com deficiência, se de um lado precisamos lutar para mudar os dogmas da sociedade, também precisamos entender que a pessoa com deficiência é parte de um todo, e não o centro do universo.

Não podemos pensar numa "arte do deficiente" isolada do seu contexto social, senão ela mesma reforça a sua exclusão, e só criamos subcomunidades, cada vez mais isoladas. Um grupo de teatro de autistas, um coral de cegos, uma vernissage de pintores surdos, não é arte inclusiva.

A Helena é uma bailarina. Ponto. Não é uma bailarina com deficiência. O Togu não é um pintor com Síndrome de Down, é um pintor. Ponto. Da mesma forma que o Stevie Wonder não é um músico cego, nem o Itzhac Perlman é um violinista cadeirante. Alguém alguma vez se referiu à Beethoven como aquele compositor surdo ? Inclusão não tem adjetivos, não tem patologias, nem situação social. Ou é ou não é.

Que possamos todos ser artistas sem precisar falar em inclusão.

Observação importante: esse texto não está sujeito a copyright e está sendo distribuído em meio digital.

* Esse texto foi publicado anteriormente no Bengala Legal

Descrição da imagem : pintura de um arco íris, feito por uma menina com Síndrome de Down, onde se lê a frase, originalmente em inglês : o problema não é a minha aparência, mas como você me olha

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Xiita Convidado - Paulo Freire e a inclusão

Gil Pena*

Estranho o desmerecimento ao Paulo Freire. Só possível dentro da lógica da Revista Veja. Em geral, não a leio; apenas quando alertado por alguém de algum absurdo mais evidente, é que procuro saber o que a Revista fez.

Paulo Freire é um educador respeitadíssimo no mundo. Sugerir que sua obra se refere a doutrinação de esquerda é no mínimo estranho. Sua obra (e creio sua vida) está toda dirigida a construção da pessoa, sua inserção no mundo como sujeito. A percepção do humano como ser dialógico é uma contribuição muito além da fronteira política ou partidária.

Não encontrei ainda em seus escritos uma consideração sobre a educação inclusiva, pois seus textos tratam de Educação, e a Educação é aquela que inclui o outro. Sua proposição de transformar o mundo por meio do diálogo é uma maneira de lutar pela inclusão. Acho que como início, todos deveríamos ler A pedagogia do oprimido, para buscar entender como nos fazem entender o nosso lugar no mundo e como construindo-nos sujeitos da história, trabalhar para transformar essa realidade.

Vou me permitir reviver um texto mais antigo, onde procuro situar como podemos entender a inclusão e a diversidade a partir da leitura de Paulo Freire.

Fiquei com a incumbência de falar sobre a inclusão e a visão da diversidade na concepção de Paulo Freire(!) Bem, não li tudo de Paulo Freire (aliás, bem pouco) e não encontrei exatamente uma alusão à inclusão ou a diversidade. Embora não necessariamente dirigido a essa luta, contudo, há muito a aprender com Paulo Freire nesse campo, muito embora o aprendizado que se faça de seu escrito possa estar muito além das palavras e frases.

Ler, como diz o próprio Paulo Freire, é coisa séria, e o leitor deve ler criticamente, reescrevendo o que o autor escreveu.

Numa reescrita, eu diria que a diversidade é uma luta pelo respeito e igualdade de direitos a diferentes grupos de pessoas, que se encontram marginalizados na conjuntura atual. Esses grupos marginalizados, são domesticados, silenciados e inferiorizados pelo grupo dominante. Ao aceitarem a visão imposta pelo grupo dominante, esses próprios grupos marginalizados incorporam os valores outorgados por esse grupo, e se vêem e se constroem como pessoas inferiores.

Na ruptura desse processo de dominação, os grupos marginalizados têm de desenvolver a consciência crítica, e entender o por que de as coisas estarem sendo dessa maneira, e trabalhar para mudar o jeito em que as coisas estão. Nesse trabalho, as lideranças e as pessoas marginalizadas trabalham no sentido de resgatar a própria cultura, construída a partir da realidade em que estão inseridos. É preciso romper com a educação bancária, em que o conteúdo é depositado no aprendiz, que passivamente o aceita como é. Na visão de Freire, o educando, em conjunto com o educador, tem de ativamente reconstruir o conhecimento, a luz de sua própria realidade, de modo que esse conhecimento seja objeto de sua avaliação crítica, e contribua para a sua releitura do mundo.

Acontece, que o grupo dominante, quer que as coisas continuem como estão e haverá resistência às mudanças, de modo que esse processo gera conflitos. Nesse sentido, o texto de Freire propõe uma ação cultural para a libertação, em oposição à cultura vigente, imposta pelas classes dominantes.

E por onde passaria a inclusão? Aí a discussão é complexa, porque enquanto grupo dominado, queremos ser 'aceitos' e participar do grupo dominante. É preciso desvelar com calma e profundidade essa realidade. Até que ponto, estamos assimilando a cultura dominadora, até que ponto queremos romper com essa cultura? Até que ponto o grupo dominante nos oferece algum espaço, onde possamos estar inseridos, mesmo como política de silenciar a população excluída.
De Paulo Freire a Habermas e de novo em Paulo Freire, diria que o movimento inclusivo trabalha em ações estratégicas, em que se objetiva algum êxito. O grupo dominante, para manter as coisas como estão, também faz uso das ações estratégicas e administra pequenas concessões, muitas vezes dando ganho não à população excluída, mas às suas lideranças, que desse modo se isolam do movimento inclusivo, no sentido da comunhão que deveriam ter com a população excluída.

O processo de mudança passa pela ação cultural. Não haverá inclusão verdadeira, se lideranças do movimento e a população excluída não trabalharem em comunhão nessa ação cultural. As pessoas ditas com deficiência têm de estar inseridas no movimento e a ação cultural também age no sentido de dar voz a elas, rompendo o silêncio em que estão imersas.

*Gil Pena é médico patologista e pai. Dedica-se a estudos na área da educação, dentro da linha do Projeto Roma.

Descrição da imagem : cartoon de Paulo Freire ensinando numa sala de aula um grupo de adultos a escrever a palavra Povo.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Xiita Convidada - ...sua filha não é retardada...

Zelinda Martins*

Eu gostaria de tecer alguns comentários acerca do uso da palavra 'retardado'. Mas, para tanto, acho que alguns princípios lingüísticos têm de ser lembrados.

Por muito tempo, considerou-se culto aquele que falava ou escrevia de forma 'difícil'. Ou seja: o emprego de construções rebuscadas e termos raros, pouquíssimo comuns, bastava para conferir erudição ao discurso. Por esse viés, promovia-se uma hierarquização por meio do saber, um 'afastamento' dos não iniciados. O resultado era, muitas vezes, um discurso hermético, que pouquíssimos - propositalmente - compreendiam.

Atualmente, o falante ou o escritor culto é aquele que sabe se adequar às mais diversas situações e aos mais diversos interlocutores ou leitores. E essa nova atitude é trabalhosa, pois é essencial empreender um movimento empático. Assim, é preciso, além de perceber o outro, rever-se e 'calibrar' as palavras e as atitudes.

Pode até parecer que é uma empáfia, já que, dessa forma, se escolheriam as palavras de modo a fazer que os outros compreendam, por vezes subestimando-os. E se voltaria então à detenção do poder, do saber... Contudo, o que se deseja é que a fala e a escrita sejam simples, que atendam a sua intenção primeira que é a de persuadir o outro. Isso não quer dizer que a linguagem usada deva ser simplória ou simplista. Um grande exemplo é Guimarães Rosa, que por meio de seus volteios e criação de novas palavras, faz-se se entender mais do que bem e ainda encanta os leitores.

A adequação é, dessa forma, essencial para a comunicação e indica que um percebeu o outro, criando-se espaços para, durante o diálogo, construírem-se mutuamente. Usou uma palavra desconhecida? Não foi entendido, não se fez entender? Então, busca-se outra, aprendem-se novas...

É preciso estar consciente do 'lugar da fala', um conceito muito importante, pois determina limites e possibilidades. Assim, a pessoa se percebe várias, pois há muitas situações no cotidiano e cada uma delas determina a forma de se comunicar. Dessa maneira, mesmo sendo única, sou esposa, sou mãe, sou professora, sou filha, sou irmã, sou amiga, sou desafeta, sou vizinha, etc, etc...

As pessoas vestem máscaras - não no sentido de serem mascaradas - que definem seus lugares de fala. Volta, novamente, a questão da adequação, que norteia a comunicação. Quando a pessoa se situa - não somente ocupa um espaço -, ela sabe que não falará com um grande e velho amigo da mesma forma que fala com a senhora com quem se encontra pela primeira vez, mesmo que se verse acerca do mesmo assunto.

Outro princípio importante é a economia. A língua é econômica, no sentido de que não há duas palavras que signifiquem a mesmíssima coisa. Usam-se sinônimos, mas mesmo em uma lista deles, há gradação. Assim, 'feio', 'horrível' e 'horripilante' guardam um traço semântico comum, mas não querem dizer o mesmo. Daí, como se faz? Como proceder a escolha da palavra? E se a palavra vier com um ranço pejorativo? E se eu não percebê-la pejorativa? Como se adequar, enfim?

Um exemplo de como essa dúvida, esse receio de não ser politicamente correto, pode beirar o inusitado: em um edital de concurso público, havia a possibilidade de isenção da taxa de inscrição para candidatos pobres. Quem escreveu o edital considerou pejorativo (ou excludente, mal-educado, etc, etc) a palavra 'pobre'. Daí, empregou: '...aqueles com hipossuficiência financeira...'.

Eu acho que tudo é questão de as pessoas se reverem e questionarem os próprios valores. E isso é árduo. Outro dia, conversando com uma amiga que é fisioterapeuta, ela me disse que o irmão dela parecia um retardado. Eu fiquei surpresa e até decepcionada, pois ela é fisioterapeuta há muitos anos e atende os mais diversos e complicados casos. Eu disse a ela para não usar aquele termo e na hora ela procurou se retratar: 'Zelinda, sua filha não é retardada...'. Eu respondi que não esperava desculpas, que não era o caso. Eu esperava que ela adequasse as palavras, principalmente ela, que está 'imersa' no ambiente da recuperação, da terapia...

Daí, ela começou a descrever o comportamento do irmão e eu consegui concluir que ele estava se fazendo de tolo, de desavisado. E ela concordou. Então, eu questionei o porquê de ela usar o termo 'retardado', quando este não é o mais indicado. Passou uma semana e ela disse que tinha ficado pensando no que eu falei. Acho que é essa a tal da 'calibragem' na comunicação.

Eu fico pensando: se para ela, que está tão ligada a pacientes com dificuldades, com limitações, usar indiscriminadamente 'retardado' é tranqüilo, como é para as demais pessoas?

Nós nos comunicamos por meio de metáforas e metonímias de forma muito freqüente e intensa, sem nos darmos conta disso. Ninguém pára para pensar no sentido de 'céu da boca' ou 'Ela é uma flor.'... Contudo, há sentidos que se banalizaram e são muito mal empregados. Assim, se a pessoa erra um caminho ou demora para entender uma piada, entre outras situações mais que corriqueiras, ela já é chamada de retardada. E a definição, apesar de tão clara ('...diz-se de ou indivíduo cujo desenvolvimento mental está aquém do índice normal para sua idade...'), é estendida para tantas situações...

E o problema é que a pessoa que emprega esse termo indistintamente acha que realmente não há problema algum, pois ela se sente respaldada pelo 'Todo mundo usa, larga de ser chato...'. E isso quando não ocorre a reversão, quando se transfere para quem reclama, chama a atenção, o impasse: 'Você que está sendo preconceituoso me criticando...' . A melhor de todas as desculpas é quando se clama pela liberdade de expressão...

Sabe, é preciso desconfiar do senso comum e posicionar-se, sim. Eu disse à minha amiga fisioterapeuta que meu toque não era por causa da Julia, pois mesmo antes de ela nascer, eu nunca achei o termo 'retardado' - usado de forma pejorativa - adequado. Eu disse que meu toque era para que ela se tornasse uma pessoa melhor.

Houve um episódio interessante, quando eu dava aula em uma sexta série: duas alunas se estranharam e começaram a se agredir. Daí, acalmados os ânimos, eu disse que só retornariam à minha aula se os responsáveis viessem conversar comigo. Vê se não é de chorar: as mães eram piores que as filhas! Tudo estava super explicado e justificado, pois os 'desvalores' eram os mesmos, literalmente passados dos pais para os filhos...

Eu acho que os valores são passados principalmente pelo exemplo. Às vezes, não é preciso falar, pois apenas agir de determinada forma já expressa o que é educado, elegante, gentil... E também o que é carregado negativamente é passado. Na semana passada, Julia e eu esperávamos a vez dela na fono. Daí, saiu da sala um moço com deficiência auditiva, que se esforça muito para falar, mesmo não ouvindo. Julia observou, deu tchau para ele e depois puxou a Luiza, a fono, bem pertinho e comentou baixinho que ele falava esquisito. A reação da fono foi de surpresa, pois ela comentou que outros pacientes, já adolescentes e com discernimento, não têm o cuidado da Julia, o de não comentar perto da pessoa, para não magoar. Senti orgulho pela sensibilidade da minha filha.

O caminho de conscientização é longo e não se sabe se há luz no fim do túnel. Contudo, se a pessoa se sentir incomodada com as inadequações, mesmo sendo tão prevalentes, deve se posicionar, sim. Abaixo a banalidade!

Em tempo: acabei falando da linguagem verbal, mas a comunicação vai além dela. Qual a mensagem da mensagem? Por que a pessoa que precisa emagrecer recebe de presente uma caixa de bombons? Por que não visito aquele parente acamado? Por que mandam-se flores sem um motivo ou uma data especial? Por que se constroem prédios sem acessibilidade?

*Zelinda Martins é professora de língua portuguesa e uma encantada pelo mundo das palavras. Das palavras bem ditas e bem escritas, das palavras caladas e, por vezes, silenciadas. É mãe de Julia, uma quase moça de 11 anos, muito talentosa e bem-humorada. Julia tem Síndrome de Down.

Descrição da imagem : cartoon de uma criança em cadeira de rodas parada junto a uma escada, no final da escada está a escola.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Deficiência não é adjetivo

Quando alguém diz para uma pessoa que enxerga que "você é cego?" ou "você está cego?" o que esta pessoa está querendo dizer que não possa atingir um cego de verdade ? Se chama um ouvinte de surdo, isso por acaso é um elogio à causa das pessoas surdas de fato ? Quando um moleque chama outro de retardado ou de mongolóide é uma prova de carinho pelo amigo ?

O uso desses termos, substantivos quando se referem às pessoas com deficiência, como adjetivos para se referir às pessoas que não o são, implica em perpetuar um preconceito histórico e cultural. Parte-se do princípio que a deficiência de alguns é algo que tem um efeito de propagação em toda a sua personalidade.Cego vira sinônimo de alienação, ignorância, falta de percepção, falta de luz. Surdez se transforma em símbolo de desatenção, de pouco caso. Retardo é a mesma coisa que estupidez, infantilidade, burrice

Sendo assim, estamos, cada qual com sua deficiência, levando com ela o peso histórico do pensamento coletivo e fantasioso do que cada deficiência implica. As pessoas, em geral, pensam que a pessoa com deficiência, por não poder realizar determinadas ações, é uma pessoa alienada, sem cultura, incapaz de tudo, por vezes até de pensar!

Não existe a desculpa de ser carinhoso, complacente ou misericordioso. Isso só perpetua a idéia negativa e equivocada que a deficiência traz às pessoas que realmente as possui.

Eu convivo com várias pessoas com deficiência, a começar do meu filho, continuando por uma coleção de bons amigos que encontrei no movimento de defesa dos direitos das pessoas com deficiência, o MAQ, meu colega de autoria desse texto, é um deles. Todos tem qualidade e defeitos como pessoas mas, certamente, não são alienados.

Usar as palavras que definem as deficiências como adjetivos sempre estará ligado a algo negativo e não somente a uma característica pessoal. Pessoas que querem como eu e você, com suas deficiências e características específicas, serem eles mesmos e aceitos, amados, incluidos e nunca "en passant", mas para sempre.

A má utilização das palavras torna-se tão natural e comum que" en passant" não é percebida ou levada a mal, acostuma-se. Entretanto, o sentido que elas carregam não se perde, é o mesmo, é o significado das palavras, não tem jeito.

Algumas pessoas sempre vão achar que isso tudo é apenas um blá-blá-blá "politicamente correto" e que as pessoas com deficiência que se sentem atingidas estão apenas sendo chatas ou suscetíveis. O que não podemos esquecer é que as palavras constróem comportamentos. Qualquer discurso sempre é intencional,conforme a função que desempenha e, nesses casos, sempre tem a função de desmerecer alguém.

Não há contexto que justifique esse tipo de fala, exceto o de diminuir as pessoas com deficiência, como se fossem seres humanos de qualidade inferior.

O MAQ tem uma prática, ao mesmo tempo irônica e educativa. Quando alguém fala "Diz ao ceguinho ao seu lado que o laço de seu sapato está solto". Ele responde pela pessoa que o está acompanhando: "diz para a pessoinha à nossa frente que o cegão aqui agradece".

Se você prestar um pouco mais de atenção nas suas falas, todos nós agradeceremos.

Esse é mais um texto escrito em parceria com o MAQ (Marco Antonio Queiroz), da Bengala Legal e do Acessibilidade Legal, sobre o pseudodiscurso da generalização da deficiência.

Descrição da imagem : diversas pessoas com deficiência em atividades de vida diária (esportes, trabalho, estudo)

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Somos todos deficientes intelectuais ?

"O argumento de que todos somos deficientes é muito comum e tem o intuito de igualar as pessoas com deficiência a todas as outras. No entanto, igualar as deficiências sensorial, física e intelectual às deficiências humanas e pessoais como os defeitos de personalidade (egoísmo, agressividade, impaciência, etc) é o mesmo que negar as deficiências como as conhecemos e são vistas socialmente.

Pessoas com deficiência são iguais a todos como pessoas humanas, porém dentro das suas diferenças específicas e nessas se distinguem suas deficiências.Se as pessoas querem aceitar as pessoas com deficiência , que as aceitem além de suas deficiências comuns e pessoais, mas com consciência plena de suas deficiências específicas que as impedem de enxergar, andar, ouvir ou pensar com rapidez.

As pessoas com deficiência só se sentirão plenamente aceitas se forem vistas em todas as suas características pessoais. Quando alguém diz que "afinal, todos temos nossas deficiências", começa a negar, na verdade, a mais social e pessoal das características das pessoas com deficiência que é a sua diferença e que por ela se denominam."
*

Talvez nem todos saibam que eu sou pai de um menino com síndrome de Down (e de uma menina com síndrome de capataz - quer mandar em todo mundo) e, por esse motivo, já há alguns anos estou envolvido com as questões relativas à deficiência intelectual (isso mesmo, não se usa mais deficiência mental desde a Declaração de Montreal de 2004), especialmente a inclusão de todas as pessoas em todos contextos.

Desde que o Samuel nasceu tentam me provar (ainda não me convenceram e, à medida que ele cresce, me convenço menos ainda) que existem algumas áreas do raciocínio que são problemáticas nas pessoas com deficiência intelectual : percepção, memória, abstração e capacidade de interpretação. Lendo e escrevendo eu descobri que não são as pessoas com deficiência que tem essa dificuldade. Somos todos nós.

Temos sérios problemas de percepção. Poucas vezes conseguimos notar que algo diferente está acontendo ao nosso redor. Quando percebemos o fato, não conseguimos ler suas entrelinhas, quando lemos as entrelinhas distorcemos tudo.

Dizem que o brasileiro é um povo sem memória. Tenho a impressão que essa não é uma exclusividade nacional. Com a desculpa da nostalgia voltamos a cometer os mesmos erros do passado. De um lado valorizamos a forma de viver do "nosso tempo" (nesse caso sempre algo da nossa infância e juventude) como se esse tempo não fosse o agora. Ressucitamos anacronismos e ainda achamos bonito. Do outro lado, esquecemos totalmente a história , geralmente naquilo que ela teve de pior, até que seja tarde demais e o estrago já tenha sido feito...de novo.

Também descobri que o uso de metáforas, analogias, metonímias e outras figuras de linguagem são inviáveis. Ironia, então, nem pensar. Não sabemos ou não queremos exercitar nossa abstração. Isso dá trabalho e exige que se pare para pensar. Só conseguimos conviver com o que é concreto, visível, palpável ou compreensível de forma direta. Precisamos personificar conceitos, ou melhor, só personificar sem conceituar nada. Deve ser por isso que os reality-shows façam tanto sucesso, uma vez que não exigem nenhum esforço intelectual.

Sempre que eu digo que o Samuel está alfabetizado desde os 6 anos, alguém me pergunta : "mas ele sabe ler (i.e. decifrar o código) ou consegue interpretar o que está escrito ?". Sou obrigado a responder que ele interpreta perfeitamente. Deve ser porque ele se limita a interpretar o que está escrito. Muitas das discussões que vejo nos grupos acontecem simplemente porque as pessoas começam a responder antes de ler o que está escrito. Não têm nenhuma capacidade de interpretação, não por incompetência, mas por displicência. Um fala bola e o outro responde a respeito das condições meteorológicas. Volta-se e explica-se o que é a bola e dizem que você não gosta de chuva.

No que que isso vai dar no futuro ? Não sei, acho que não tenho a percepção do todo e, de qualquer forma, quando o futuro chegar ninguém vai se lembrar mesmo.Talvez os seres do porvir apenas nos interpretem como uma abstração qualquer.
Os seres do porvir serão justamente esses que hoje chamamos de deficientes intelectuais, que prestam mais atenção, guardam nas suas memórias o que lhes é relevante, conseguem abstrair e interpretam corretamente o que é escrito porque, conscientes de suas limitações, estão preocupados em acertar.

*Esse trecho do texto é uma adaptação de uma mensagem do MAQ (Marco Antonio Queiroz), da Bengala Legal e do Acessibilidade Legal, sobre o pseudodiscurso da generalização da deficiência.

Descrição da imagem: foto do Samuel lendo "O Fantasma de Canterville" de Oscar Wilde. Segundo ele uma história bem maluquinha.