quarta-feira, 26 de novembro de 2008

O discurso do desprezo

Existem alguns discursos recorrentes na comunidade das pessoas com deficiência, alguns próprios das pessoas com deficiência, outros de pais e profissionais que circulam no meio. Um deles é o discurso do desprezo pelas conquistas alcançadas.

Explico melhor.

Sou pai de um menino com síndrome de Down, uma alteração genética do cromossomo 21, provavelmente a mais comum das síndromes genéticas, que provoca uma série de limitações, especialmente ligadas às questões musculares e cognitivas (se bem que essas, muito mais decorrentes do contexto social preconceituoso do que da genética)

O Samuel, desde que nasceu foi muito estimulado, seja com as terapias adequadas para ele mas, principalmente, pelo fato de ter tido a oportunidade de estudar numa escola comum, fazer atividades esportivas, culturais e religiosas em meio a pessoas com e sem deficiência. Além do que, o moleque é um cara esforçado e persistente.

O resultado é que ele foi alfabetizado nas mesma idade que os seus colegas de classe, continua na mesma série escolar que eles, com um desempenho muito próximo dos seus companheiros (e, em alguns casos, até melhor).

Mas não é só o meu Samuel que tem alcançado vitórias expressivas. O Samuel Sestaro e a Priscila entraram na faculdade, e não foram as primeiras pessoas com síndrome de Down a chegar nesse ponto. A Débora é professora, o Cláudio, o Guto, a Ana, a Mariana e tantos outros estão trabalhando em empregos sérios. Todos chegaram lá porque as pessoas acreditaram neles e eles correponderam a esse estímulo.

Aí me vem algumas pessoas e dizem que síndrome de Down nem é deficiência, no também velho discurso que a deficiência do meu filho/aluno/paciente sempre é mais séria que a sua. Ou seja, essas conquistas não tem mérito nenhum.

No fundo estão dizendo que o trabalho dos terapeutas não valeu nada, ou era desnecessário. Que o trabalho dos professores não foi nada mais que o feijão com arroz. Que a dedicação dos pais deve ter sido só uma overdose de estimulação, mas não tem valor algum.

Pior. Desprezam o próprio esforço que essas pessoas com Síndrome de Down fizeram para ultrapassar limites, naturais e impostos pela sociedade, para superar preconceitos e para conquistar seus espaços como cidadãos.

Ora bolas, se Síndrome de Down não é deficiência por que é então que 90% dos americanos que recebem diagnóstico precoce da mesma optam pelo aborto? Por que os pais, quando recebem a notícias entram em estado de choque?

Se não faz diferença nenhuma por que será que as escolas continuam a recusar alunos com a síndrome? Por que muitos professores alegam que não sabem lidar com "isso"? Por que juízes insistem em interditar essas pessoas?

Fingir que a deficiência não está presente também é uma forma de exclusão. É negar o valor da própria pessoa, como se ela fosse um ser que não é. É um atentado contra a sua identidade.

Eu espero que num futuro não muito distante, as conquistas das pessoas com síndrome de Down possam passar desapercebidas, mas não porque elas deixaram de ter alguma deficiência, mas pelo reconhecimento de que essa deficiência não lhes tira os direitos equivalentes aos de qualquer outro ser humano.

Quanto a esse discurso deixo a mesma frase que o Samuel me fala, de vez em quando : "me poupe".

Descrição da imagem : foto do Samuel sorrindo

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Perdidos no espaço

Andei pensando sobre o que é o espaço urbano. Primeiro fui ao dicionário e descobri que a principal definição de espaço é uma "extensão indefinida". Urbano se refere aquilo que é "da cidade ou próprio da cidade". Logo, espaço urbano é qualquer extensão indefinida dentro de uma cidade. Sendo qualquer lugar torna-se, ao mesmo tempo, todos os lugares.

O que não quer dizer que todos os lugares da cidade podem ser freqüentados por todos. E nem estou pensando em questões de uso de locais privados, nem os espaços ditos públicos (que deveriam ser comuns a todos) realmente o são.

A explicação é triste, mas é real: nem todos são considerados seres humanos do mesmo valor. Pobres e negros são acompanhados de perto por seguranças de shopping centers, tipos que usem roupas exóticas são olhados como sendo de outro planeta. Quando não são assassinados por aqueles que deveriam lhes garantir a segurança, como ocorreu recentemente em São Paulo.

E as pessoas com deficiência...ah as pessoas com deficiência, são uns coitadinhos que deveriam ficar guardados dentro de casa ou de alguma instituição que cuidasse dos mesmos, que diabos esses caras inventam de circular nas ruas?

Além de não serem considerados cidadãos de primeira classe, também acredita-se que se são "deficientes", eles é que precisam dar conta das suas limitações, que precisam superar suas dificuldades - o problema é deles, não de todos.

Um cadeirante não consegue atravessar um quarteirão inteiro, afinal cada dono de casa ou prédio é responsável por sua calçada e essas não tem padronização nenhuma, mudam de nivel a cada dez metros, formam degraus. Muitas não tem manutenção nenhuma. Se, por um milagre conseguem chegar onde queriam, não podem entrar pois os arquitetos fizeram escadarias monumentais ou instalaram elevadores cujas portas não tem largura suficiente para uma cadeira de rodas.

As pessoas cegas também sofrem as agruras da falta de acessibilidade. Alguns elevadores tem o teclado em braille. Mas nem todo cego lê braille, pior, os que sabem braille conseguem apertar o botão do andar para onde querem ir, mas como descobrem que o elevador chegou no pavimento desejado? Pare para pensar um pouco : como é que um cego consegue atravessar sozinho uma rua? Também são pessoas que querem viver com autonomia e não ter de depender dos outros para se movimentar.

Pessoas surdas podem não ter restrições de mobilidade ou de visão. O que não significa que o espaço de todos lhes seja seguro. Mais de uma vez, em notícias recentes, pessoas surdas foram presas porque se "recusavam" a responder questionamento de policiais!

Se a deficiência é intelectual a hostilidade já começa no olhar. Se não é hostilidade é compaixão assistencialista : "aquele moço com Síndrome de Down andando sozinho na rua deve estar perdido...será que a família não cuida dele?" As pessoas fazem todas as suposições, exceto é de que essas pessoas tem capacidade para viver e se locomover como qualquer outro. Afinal, ele não é um ser tão humano como nós, não é mesmo?

Mas não são só os cadeirantes, cegos, surdos ou pessoas com deficiência intelectual.

Outro dia vi uma mãe empurrando o carrinho de bebê pelo meio da rua, correndo o risco de ser atropelada, pois a calçada era inviável. Uma pessoa obesa não entra em muitos elevadores e banheiros que já vi por aí. Ops! Então essa tal de acessibilidade não é só para pessoas com deficiência? Pessoas idosas poderiam ser beneficiadas? Mulheres grávidas ? Até os meninos que empurram os carrinhos de entrega de supermercado? Semáforos sonoros seriam mais seguros para todos? Respeito é bom para todo mundo.

Derrubar barreiras físicas, de comunicação e de atitude pode beneficiar todo mundo. Não é um privilégio concedido às pessoas com deficiência.

Mas isso só vai acontecer quando a diversidade for considerada como valor. Esta incompreensão da cultura da diversidade implica em que a sociedade pense que a inclusão seja destinada a melhorar a a vida das pessoas com deficiência e não a vida da população em geral.

A cultura da diversidade vai nos permitir construir uma cidade de qualidade, espaços de de qualidade e cidadãos de qualidade. A cultura da diversidade é um processo de aprendizagem permanente, onde TODOS devemos aprender a compartilhar novos significados e novos comportamentos de relações entre as pessoas.

Para o bem e para o mal.

Descrição da imagem : cartoon onde se vê uma guilhotina que tem uma rampa com o sinal internacional de acessibilidade.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Nada mais me surpreende


Antigamente eu achava que o caderno de política dos jornais eram a parte mais cômica do noticiário. Ando tentado a rever essa minha posição.

Não que a política tenha se tornado séria, nem nessas nossas plagas, nem alhures. O que acontece é que as editorias de ciências devem ter buscado reforços ou baixou um Stanislaw Ponte Preta nas redações.

Essa semana veio em dose dupla.

Primeiro com um estudo correlacionando a incidência de autismo com os índices pluviométricos.

Você parou e leu de novo, não foi isso ? Quando li eu também. Imediatamente me lembrei da cidade de Belém do Pará, a máxima local é que lá quando não chove todo o dia, chove o dia todo. A incidência de autismo deve ser brutal. Um amigo disse que Ubachuva (apelido carinhoso de Ubatuba) vai se chamar Ubautismo.

Até entendo que cada cientista quer ser o primeiro a descobrir o que causa o autismo (até hoje, um mistério), mas já estão apelando para a ignorância. Deve ser um candidato sério ao IgNobel.

Mas teve mais. O jornal da Ciência publicou uma matéria a respeito de doping. Não era nenhum estudo sobre os atletas olímpicos nem sobre a Volta da França, o público que anda fazendo uso de estimulantes para melhorar seu desempenho são os cientistas e estudantes.

Uma pesquisa mostrou que 20% dos cientistas usam algum tipo de bolinha como anabolizante cerebral. Daqui a pouco os candidatos a mestrado e doutorado vão ter de passar por exames de anti-doping antes de defenderem suas teses (será que alguma sobre o uso das drogas ?)

Mas não só os pesquisadores de ponta é que usam trapaças químicas, outros estudantes também. E não é a velha combinação de café com coca-cola para passar a noite estudando, mas metilfenidatos e modafinilos.

Podem esperar que, em breve, as faculdades vão começar a sortear candidatos dos vestibulares para um xixi básico depois das provas. Pais vão começar a dopar os filhos em época de provas.

O limite vai ser a análise das fraldas dos berçarios pela WADA.

Descrição de imagem : linha de partida de uma corrida, o juiz ao invés de um revolver, tem uma seringa apontada para cima.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Inclusão é a #$@*& !!

Já se passaram quase 50 anos da revolução sexual dos anos 60, mas sexo ainda é um tema que causa profundo estranhamento nas pessoas (mesmo as que nasceram bem depois disso).

Alguns temas ainda são grandes tabus, especialmente quando surgem em contextos onde não eram esperados. A notícia da BBC que foi criado um bordel para pessoas com deficiência na Holanda acabou sendo muito pouca comentada nos grupos, exceto por uma brincadeira do MAQ e uma questão do Lúcio se seria um caso de prostituição inclusiva (essa análise eu faço um pouco mais adiante), de resto, silêncio geral.

Não é a primeira vez, há cerca de um ano saiu uma notícia sobre a iniciação sexual de pessoas com deficiência em prostíbulos.

A verdade é que muitos acreditam que as pessoas com deficiência são assexuadas ou, na melhor das hipóteses, que precisam se contentar em se relacionar com os seus iguais.

Não sou defensor da prostituição. Muito pelo contrário, acho que é uma forma de degradação das pessoas (que fornecem o serviço e também das que o consomem). O que não significa que deixe de ser uma realidade. Pode-se alegar que seja ilegal, imoral e inconveniente. Mas está aí em todo o lugar e, em alguns países de forma legal.

Ou seja, podemos até nos posicionar contrariamente à prostituição, desde que seja para todos (no caso, para ninguém), mas supor que existindo não possa estar acessível às pessoas com deficiência que a querem é uma posição contraditória.

As pessoas com deficiência não são menos humanos que os demais. Também tem suas práticas imorais, ilegais e inconvenientes.

Eu acho o fim da picada as pessoas se prostituirem, mas não me surpreenderia se lesse uma notícia em que as próprias pessoas com deficiência oferecessem seus corpos. Um excelente artigo da Lia Crespo trata da questão da atração sexual por pessoas com deficiência (e estou falando de desejo sexual não de abusos).

Pessoas com deficiência também gostam de ler a Playboy e ver filmes pornográficos, como outras pessoas que também gostam disso.

Quanto à pergunta do Lúcio : seria essa a prostituição inclusiva ?

Certamente não, uma vez que é um bordel criado especificamente para atender pessoas com deficiência, ou seja um bordel especial. Seria inclusiva se a notícia dissesse que todos os bordéis da Holanda atendem pessoas com deficiência junto com os demais clientes sem deficiência.

Acho que as prostitutas dos bordéis comuns alegam que não estão preparadas para lidar com essas pessoas...afinal, devem ter demandas que não constam do Kama Sutra.

Descrição da imagem : prostitutas vistas da cintura para baixo na calçada de uma avenida