quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Xiita Convidada - Direito ao voto?

NO BRASIL, O DIREITO AO VOTO É REALMENTE IGUAL PARA TODOS?


Beto Pereira, Ethel Rosenfeld e Flavia Boni Licht[i]

“As urnas das seções eleitorais devem ser adequadas ao uso com autonomia pelas pessoas com deficiência e/ou com mobilidade reduzida e estarem instaladas em local de votação plenamente acessível e com estacionamento próximo”.

Isso foi decretado no longínquo ano de 2004[ii]! E até hoje – é bom lembrar que estamos em 2012, e já se passaram oito anos e quatro eleições – muitas, inúmeras urnas continuam inadequadas ao uso com autonomia pelas pessoas com deficiência e instaladas em locais de votação totalmente, absurdamente inacessíveis.

Então, sob a forma de depoimento, relatamos, a seguir, algumas situações vivenciadas por nós, e ficamos imaginando quantas outras semelhantes – ou até piores – ocorreram no último dia 7 de outubro, data da realização do primeiro, e, na maioria das cidades brasileiras, único turno das eleições 2012.

1º depoimento: eleitor em Jundiaí, fui votar, como faço há muitos anos, na Escola Estadual Ranieri Mazzilli, acompanhado de minha mãe e guiado por Simon, meu cão-guia. A poucos metros da sala de votação, um fiscal de nome Anderson repreendeu minha mãe de forma grosseira, dizendo não ser permitido o acesso de cães. Falando com o fiscal, disse-lhe que deveria dirigir-se diretamente a mim e, complementando, informei-lhe que a presença do cão-guia é autorizada por lei federal. Em resposta, ouvi do fiscal que o cão assustaria os demais eleitores e, ao tentar contrapor, fui avisado de que o referido fiscal tinha ido embora e me deixado falando sozinho. Em função da gravidade do fato, fui até a delegacia mais próxima onde registrei a ocorrência, não sem antes, claro, ter sido desencorajado por outras pessoas que ali trabalhavam: por um passe de mágica, agora, fariam o "favor" de liberar meu acesso acompanhado de Simon. No 4º Distrito Policial da cidade, fui otimamente atendido, instruído a retornar à seção eleitoral e, no caso de qualquer impedimento, solicitar a presença do juiz eleitoral ou até da polícia militar. Com o boletim de ocorrência em mãos, retornei e, em menos de 20 segundos frente à urna eletrônica, votei. Apesar de, conforme recomenda a legislação, não existir adaptação sonora com retorno de voz para que me fosse possível ouvir a confirmação do meu voto, o que deixa claro que a adaptação existente não passa de “tapa buraco”, um ludibrio às pessoas que não estão informadas acerca de acessibilidade, inclusão e direitos. Vale esclarecer que essas mesmas urnas, além do teclado em braile, devem ser dotadas de saída para fone de ouvido para que as pessoas com deficiência visual possam receber sonoramente todas as informações visuais que são dadas na tela às pessoas que enxergam.

2º depoimento: eleitora em Porto Alegre, fui votar, como faço há muitos anos, na Associação Leopoldina Juvenil, onde, no salão de festas do clube, são instaladas em torno de dez mesas eleitorais. Para chegar ao salão de festas, todos precisam subir uma sequência de duas escadas – uma, aproximadamente, com cinco degraus, outra certamente com o dobro disso. Por coincidência, na minha frente, uma moça, que caminhava com apoio de andador, subia aquelas escadas com gigantesca dificuldade. Chamava a atenção o fato de estar desacompanhada e negar-se a receber qualquer tipo de auxílio. Depois de votar, repetiu-se a coincidência: nova situação difícil vivenciada por outro eleitor que, com mobilidade reduzida, descia aquelas escadas de forma bastante penosa. Também ele estava sozinho e negava-se a receber auxílio. Ambos, pareciam acreditar na legislação que, desde 2004, exige locais de votação plenamente acessíveis. Vale lembrar que pessoas da minha família, votantes na Escola Estadual Visconde de Pelotas, eleição após eleição ficam perplexas ao observar todas as urnas eletrônicas colocadas em salas no segundo andar do prédio (sem elevador, claro). Ou seja, todas as pessoas – inclusive as com deficiência, os idosos e as gestantes – têm que subir escadas para poder votar. E trata-se, aqui, de uma escola pública que, pela lei em vigor no Brasil, já deveria estar plenamente adaptada há muitos anos.

3º depoimento: eleitora no Rio de Janeiro, fui votar, como faço há muitos anos, na sede do Instituto de Arquitetos do Brasil. Lá, já se acostumaram com meu cão-guia. Mas, sempre temos histórias para contar. Dessa vez, a presidente da mesa perguntou à minha prima se eu assinaria meu nome. Eu me abaixei, peguei a caneta e disse baixinho, só para ela: podes falar diretamente comigo, não precisas dirigir a palavra à minha acompanhante! Também naquela seção eleitoral, apesar de a urna ter teclado em braile, o retorno sonoro, que daria aos eleitores cegos a segurança da confirmação do voto, inexiste. Por essa razão, voto acompanhada – por uma pessoa da minha confiança, mas, mesmo assim, meu voto deixa de ser secreto, o que me coloca em situação de desigualdade em relação a milhões de eleitores brasileiros. Há alguns anos, decidi que não votaria mais “no escuro”. Naquela ocasião, a presidente da mesa me impediu de votar pois, argumentava ela, há braile no teclado, não precisas de acompanhante...  e a “solução” encontrada pelo pessoal que controlava a mesa eleitoral veio sob a forma de duas alternativas: que eu não votasse e pagasse a multa correspondente. Ou que eu passasse a votar no Instituto Benjamin Constant[iii], o que demonstra que muita gente não tem a menor ideia do significado da palavra inclusão.

É, há coisas que parecem piada! Como o que ocorreu com um candidato a vereador, carioca, paraplégico, usuário de cadeira de rodas. Depois de muito trabalho em campanha, na última semana antes das eleições – ou seja, quase às vésperas do pleito –, sua candidatura foi impugnada pois descobriram que ele não havia votado na eleição de 2010. E por que ele não votou? É que, para chegar à sua seção eleitoral, teria que subir uma imensa escadaria e ninguém, na ocasião, dispôs-se a carregá-lo. Ou seja, por absoluta falta de acessibilidade, ele não pôde votar em 2010 e não pôde candidatar-se em 2012. E ainda existe gente que acha que as pessoas com deficiência são intransigentes quando exigem que seus direitos sejam respeitados...

Nas cidades onde as últimas eleições não se decidiram no primeiro turno, ainda há tempo para o Tribunal Superior Eleitoral obedecer às leis brasileiras de acessibilidade vigentes desde 2004. Infelizmente, na maioria esmagadora dos municípios brasileiros isso apenas poderá ocorrer em 2014. Até lá, vamos ficar na expectativa, cada um de nós fazendo sua parte para construir uma sociedade mais acessível, justa e solidária.

[i]  beto@betopereira.com.br | ethel@ethelrosenfeld.com.br | flaviaboni@via-rs.net
[ii] Decreto nº 5.296 de 2 de dezembro de 2004 - regulamenta as leis nº 10.048, de 8/11/2000, que dá prioridade de atendimento às pessoas com deficiência e/ou com mobilidade reduzida, e nº 10.098, de 19/12/2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas com deficiência e/ou com mobilidade reduzida.
[iii] O Instituto Benjamin Constant foi criado no Rio de Janeiro, pelo Imperador D. Pedro II, por Decreto Imperial n.º 1.428/1854, e inaugurado no dia 17 de setembro do mesmo ano com o nome de Imperial Instituto dos Meninos Cegos. Aos poucos, o Instituto foi derrubando preconceitos e mostrando não ser utopia a educação e a profissionalização das pessoas cegas. Hoje, o Instituto Benjamin Constant é um centro de referência nacional para questões da deficiência visual.


Descrição da imagem: pessoas numa fila de votação em Garopaba-SC que se estende por uma longa escadaria

domingo, 23 de setembro de 2012

Cobegra para todos

Mensagem
Na sequência de Conferências Nacionais que se propõe a criar um maior interesse social nas políticas públicas, informamos que já está sendo organizada a I COBEGRA - Conferência Nacional de Benefícios e Gratuidades, uma articulação conjunta dos ministérios de Previdência Social, Cidades, Fazenda, Transportes, Planejamento, Caça, Pesca, Corte e Costura.

A Conferência será organizada  nos seguintes eixos temáticos

I - Benefícios fiscais, parafiscais e paranormais
II - Aposentadorias , pensões  e licenças remuneradas para grupos de interesse exclusivos
III - Gratuidades nos transportes, no lazer e nas assinaturas de TV a cabo
IV - Programa de Gratuidades gerais (Pró-grátis)
V - Organizações beneficentes e assistencialistas - incluindo o manual de franquia para abrir uma
VI - Sistemas burocráticos de obtenção de benefícios - incluindo formas de mascarar declarações e atestados 
Para participar é obrigatório que candidato esteja disposto a fraudar laudos e comprovantes de renda, além de assumir que ele mesmo ou seus dependentes são incapazes de realizar quaisquer atos no presente e no futuro.
As inscrições, obviamente, são gratuitas, exclusivamente através do site:
Queixas a respeito desse evento devem ser encaminhadas por comentários ou, caso se utilizem de palavras de baixo calão, para euteodeioseuogro@naoexiste.com.br

domingo, 15 de abril de 2012

A cor da alma


Meu café é preto, normalmente muito preto. O que lhe dá corpo é o pó. No meu caso, extra-forte.

Meu leite é branco, como deve ser todo leite. O que lhe dá corpo é a lactose.

Nem um, nem outro existiriam sem água que lhes dá fluidez e vida. Desidratados são apenas poeira inerte.

Mesmo o mulato pingado, mais ou menos escuro ao gosto de cada um, não seria nada se não fosse composto essencialmente de água.

E a água é transparente. Incolor dizem os químicos.

Eu sou branco, palidamente branco, quando muito avermelhado se exposto excessivamente ao sol.

Meu amigo Nivaldo é negro. Bastante negro, exposto ou não aos raios ultra-violeta.

Branca é só a minha casca, como é negra a casca do Nivaldo. Humanos, como somos, nossas almas, como a água, são transparentes.

Dão vida ao corpo, como a água dá vida ao café e ao leite. Alma não tem cor, sua qualidade não se define pela cor da pele, invólucro perecível da existência.

O que não significa que muitos brancos ainda insistam em atribuir almas brancas aos negros que eles consideram de melhor qualidade.

Como se a cor da pele e, nesse caso, da alma, definisse a qualidade ou a humanidade de um ser.

Pior ainda se considerarmos que são justamente as mesmas pessoas que se dizem igualitárias e sem preconceitos que falam essas bobagens.

E, ao falar tamanha asneira, acabam por condenar humanos de outras fisiologias e anatomias que não às suas, à exclusão da sociedade que dizem ser de todos.

Humanos somos. Uma só raça, uma só identidade, um único conjunto de deveres e direitos éticos.

Diversos na apresentação, nas necessidades, nas habilidades.

O que passar disso é discriminação.


Descrição da imagem: uma série de pequenas fotos de mãos negras e brancas realizando diferentes movimentos em conjunto.

sábado, 31 de março de 2012

Comemorar ou lamentar?

No próximo dia 21 de Março será comemorado mais um dia internacional da Síndrome de Down

O evento que começou há sete anos agora tem status oficial, reconhecido pela ONU (graças ao esforço da Patricia Almeida).

Teremos caminhadas, encontros, sessões solenes em casas legislativas e palestras, muitas palestras.

E são exatamente essas palestras que me provocam uma dúvida recorrente: estamos comemorando ou lamentando a síndrome de Down?

Os temas em debate apontam para uma permanente busca da cura da condição genética. Mas, se é uma condição genética (como a cor dos olhos ou a curvatura do nariz) por que lidamos com o assunto como se fosse uma doença?

Protocolos médicos, tratamentos, pesquisas genéticas são a tônica no Brasil e no mundo.

Se é uma doença precisamos de dias de luta, como existem os dias de luta contra o câncer ou contra a AIDS.

Se a SD faz parte da essência e da natureza das pessoas e, se dizemos que as consideramos como qualquer outro ser humano, porque essa necessidade de achar caminhos para combater os efeitos da trissomia?

Seria a mesma coisa que propor a cura da homossexualidade...ops, é verdade, tem bastante gente que ainda acha que é algo curável.

Seria a mesma coisa que buscar métodos de clareamento dos negros...ops, é verdade, ainda tem muita gente que quer lhes dar uma "alma branca".

Como é que podemos sair pelas ruas exaltando as diferenças que, no íntimo, queremos eliminar ou minimizar?

Se nós, pais e parentes de pessoas com síndrome de Down, continuamos a olhar para ela como uma dor de cabeça, como podemos esperar que o resto do mundo abandone seus preconceitos?

Como defender a capacidade de aprendizado dos nossos filhos se insistimos em lidar com isso de uma forma terapêutica?

Como preparar para autonomia pessoas que nós mesmos apresentamos para o mundo como incapazes?

Se o nosso objetivo é acabar com a síndrome de Down não faz o menor sentido comemorar sua existência ou, pelo menos, precisamos repensar criticamente os nossos objetivos a esse respeito.

Descrição da imagem: foto de Fábio junto com Samuel e Letícia

Texto publicado originalmente dia 21/03/2012 no blog da NEPPD UFAM