quinta-feira, 10 de março de 2016

Infinitas possibilidades perdidas


Faz parte da essência de um publicitário brincar com as palavras, imagens e sons. Ao redor deles é que esse profissional vai desenvolver a sua criatividade com o objetivo de vender um produto, serviço ou ideia.

Os melhores publicitários são aqueles que manipulam bem os seus recursos e, principalmente, como diria Ogilvy, aquele que atinge o objetivo de quem o contratou.[1]

O que não significa que todos trabalhem assim. Como em qualquer profissão existe gente com e sem competência. Um ex-chefe meu odiava o que ele chamava de síndrome de criatividade de alguns publicitários, para quem era mais importante a “sacada genial” (o genial fica por conta vaidade desses profissionais) do que aquilo que eles estavam anunciando.

A nova campanha do FIATToro me lembrou muito disso.

A sacada “genial” dos números que geram infinitas possibilidades sendo usada como metáfora de um carro que, segundo a propaganda, também seria detentor dessa infinitude, derrapou na lama de alguma das estradas de terra por onde ele passa no filme.

Sem perder tempo lembrando que um piano pode ter mais de 88 teclas (eles poderiam se ater ao dodecafonismo dos instrumentos temperados que teriam sido mais felizes), ou que muitos alfabetos superam[2] de longe o nosso limitado a 26 letras, o que me chamou a atenção foi excluir das possibilidades infinitas as pessoas que tem um número de cromossomos diferente de 46.

Pessoas com síndrome de Turner podem ter um cromossomo a menos. Pessoas com síndromes de Down, Patau, Warkany, triplo X e Klinefelter, tem um cromossomo a mais. Algumas síndromes raras podem provocar a ocorrência de tetra ou pentassomias e, nesses casos, serão pessoas com 48 ou 49 cromossomos.

E não são poucas, estamos falando de alguns milhões de pessoas ao redor do mundo, só no Brasil, onde a propaganda está sendo veiculada, a estimativa é de mais de meio milhão de pessoas (e suas famílias)

Pessoas que também possuem infinitas possibilidades de vida, de potencial e de sucesso. Se alguém quiser brincar de análise combinatória pode calcular que quem tem cromossomos a mais tem um número bem maior de possibilidades, diga-se de passagem.

Fiquemos apenas nas três possibilidades do que originou essa mancada (e sim, foi uma mancada, basta ler os comentários do vídeo no youtube para perceber que desagradou muita gente):

A primeira é a desinformação. Quem criou e quem aprovou a campanha (criação, planejamento, atendimento e o próprio cliente) não sabe nada a respeito das variações cromossômicas.

E se não sabem nada, antes de usar essa referência no texto, deveriam ter feito a lição de casa e estudado melhor o que estavam colocando no papel. Mas, e sempre há um mas, para que alguém que tem “sacadas geniais” precisa estudar algo? Gênios não precisam de pesquisa.

A segunda possibilidade é a do esquecimento. Alguém falou algo a respeito, mas como o redator ficou trabalhando durante toda a madrugada na campanha que o atendimento tinha de apresentar as 9 da manhã do dia seguinte para ser produzida no mesmo dia e veiculada na mesma noite, ninguém checou o material e esse “detalhe” passou em branco. As velhas e péssimas desculpas do meio.

A terceira possibilidade é mais assustadora, mas não pode ser descartada, ou seja, agência e cliente sabiam, lembraram, mas deliberadamente excluíram da mensagem. Afinal, a propaganda precisa passar uma imagem de gente feliz em situações perfeitas para tornar o produto um objeto de desejo. Associar o produto a essa gente esquisita que tem cromossomos a mais ou a menos não vai fazer bem para a marca.

Nesse caso, a situação seria de clara discriminação e preconceito e precisaria de um tratamento de choque. O único problema é que não seria possível provar isso somente pela veiculação do filme.

Por outro lado, a marca perdeu a grande possibilidade de associar seu nome a defesa da diversidade. Criou um público de inimigos e ainda vai gastar dinheiro vindo à mídia para se desculpar pela gafe.

Nesse momento, fica apenas o nosso repúdio.

Descrição de imagem: uma das salas da instalação "Além do infinito" de Serge Salat, montada sobre formas, cores e espelhos que dão a sensação de infinidade. No centro da instalação uma pessoa é reproduzida em infinitas imagens espelhadas.





[1] “Sua função é vender, não deixe que nada te distraia do único propósito da publicidade”. (David Ogilvy)
[2] O alfabeto russo tem 33 letras. Os dicionários chineses indicam a existência de 47 a 85 mil diferentes sinogramas, na escrita japonesa existem mais de 6 mil kanji