quinta-feira, 26 de agosto de 2021

O menino que até aprenderia a ler

 


Dezembro de 1998. Nascia o nosso primeiro filho, o Samuel. Logo de cara dois sustos: a síndrome de Down e uma cardiopatia que precisava ser corrigida por cirurgia. É óbvio que ficamos sem chão. Além de pais de primeira viagem, não sabíamos nada a respeito de nenhuma das duas situações. Fomos aprender.

Lembro de duas frases que me marcaram. Uma do geneticista do hospital que disse que eu não deveria entrar em pânico, pois “essas crianças” até aprendem a ler. A outra de um pai de um menino de 9 anos que disse que o Samuel seria aquilo que nós investíssemos nele, e fez questão de ressaltar que não era dinheiro, mas estimulação, atenção e nossa crença de que ele não tinha limites.

O tempo, os contatos e algumas visitas a escolas especiais nos aproximaram da educação inclusiva. Não era uma opção, era o único caminho viável. E mergulhamos sem medo naquilo que ainda era mais uma luta do que uma realidade.

E assim se passaram 22 anos, e o menino que “até iria aprender a ler” hoje se graduou em Pedagogia, para ensinar outras crianças também a ler e escrever.

Não foi superação, não foi heroísmo, não foi milagre.

Foi a convicção de que as pessoas só se desenvolvem no relacionamento com pessoas de todos os tipos.

Foi a cabeça-dura do pai que nunca deixou ele participar de atividades segregadas.

Foi a recusa em lhe dar privilégios e tratamento diferentes do que se daria a qualquer outro filho.

Ele teve algum privilégio? Certamente, e ele sabe disso. Privilégio de nascer em uma casa em que a educação era objetivo essencial. Privilégio de ter uma irmã que nunca deu moleza. Privilégio de contar com excelentes professores no caminho. Privilégio de concluir um curso superior que ainda é apenas um sonho para muitos brasileiros. E até o privilégio de ter enfrentado o preconceito da primeira faculdade onde entrou e aprender muito com isso.

Não vou me arriscar a listar todas as pessoas que contribuíram na construção desse caminho, seria um risco deixar muitos de fora (mas cada um deles sabem quem são), mas apenas mencionar duas pessoas cujos ensinamentos foram essenciais nesse processo: o Prof. Miguel Lopez Melero da Universidade de Málaga, e a Profa. Maria Teresa Mantoan da Unicamp, a quem eu chamo carinhosamente de meu guru e a minha gurua.

Agora começamos uma nova fase, a da busca de trabalho. As regras do jogo, porém, não vão mudar. Todos com todos. Sem segregação. Sem tratamento “especial”, e a expectativa de algum dia não precisar mais falar sobre inclusão.

Descrição da imagem: Samuel, um jovem magro e barbudo, vestido com a beca e o capelo de formando.


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